Correria, rolê, rolezinho, rolezão… Ao ler Quarto de despejo, o movimento incansável da autora e protagonista impressiona: a escritora, mulher negra e favelada, vasculha diariamente as ruas e avenidas da região da favela do Canindé, encravada 60 anos atrás onde hoje está o estádio da Associação Portuguesa de Desportos, na capital paulista. O motivo das andanças é óbvio: Carolina Maria de Jesus sobrevive catando lixo.
O intenso vaivém nos anos 1955, 1958, 1959 e 1960, dos quais trata seu diário, é permeado pelas cruas descrições da fome e de outras misérias, das agruras para criar os filhos, das tretas na favela, mas também por poucas – se bem que marcantes – passagens felizes, como relacionamentos amorosos e reflexões sobre a escrita.
Os locais por onde passa Carolina Maria de Jesus são identificáveis, basicamente, de duas maneiras: menção a ruas e avenidas, às vezes com o número exato do local, e nomes de estabelecimentos comerciais, órgãos governamentais, delegacias, entre outros. E sempre andando.
Na maioria das vezes, a protagonista sai do barraco para vasculhar locais próximos, como as avenidas Tiradentes e Cruzeiro do Sul, onde cata papeis, metais, vidro e qualquer outro material que possa ser vendido. Era lixo, ainda é, mas hoje está dignificado, com relativa justificativa ecológica, como material reciclável. Na vida da mulher que cria um casal de filhos sozinha, há sempre um corre a mais a fazer.
Como na anotação de 22 de maio de 1958, com a grafia original da autora, como em todas as citações desta reportagem: “Fui no Palacio, o Palacio mandou-me para a sede na Av. Brigadeiro Luís Antonio. Avenida Brigadeiro me enviou para o Serviço Social da Santa Casa. Falei com a Dona Maria Aparecida que ouviu-me e respondeu-me tantas coisas que não disse nada”. O referido palácio é o do governo estadual, sede do Serviço Social de São Paulo, em 1957.
Entre tantos contrastes, uma das forças de Quarto de despejo é justamente a monotonia da miséria contrastando com a obrigação de sair às ruas, diariamente. E na rua, tudo rola: Carolina acha o que comer, o que vestir e vender, encontra amigos, evita inimigos, é insultada, a exemplo de 16 de agosto de 1958: “Quando eu passava na Avenida Tiradentes, uns operários que saíam da fabrica disse-me:
– Carolina, já que você gosta de escrever, instiga o povo para adotar outro regime.
Um operario perguntou-me:
– É verdade que você come o que encontra no lixo?
– O custo de vida nos obriga a não ter nojo de nada. Temos que imitar os animaes”.
Poucas vezes Carolina vai para longe da favela, como na visita ao Diário da Noite, no centro de São Paulo, quando seu livro estava sendo lançado, conforme lemos na anotação de 11 de junho de 1959: “Depois fomos na redação e fotografaram-me. (…) Prometeram-me que eu vou sair no Diario da Noite amanhã. Eu estou tão alegre! Parece que a minha vida estava suja e agora estão lavando”
Apesar desses alentos, o diário termina lacônico e brutal com a única anotação referente ao ano de 1960: “Levantei a 5 horas e fui carregar agua”.
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