Literatura da Peri, Periferia – Dinha

Dessa grande poetisa, só o apelido é no diminutivo.

Poeta convocando a Revolução através da poesia _ foto: Marcio Salata

Desde que Maria Nilda de Carvalho Mota nasceu na cidade de Milagres, no Ceará, em 1978, as pessoas comentavam que ela era “parecida com a Dinha”. Quem era Dinha? Eram várias, “lá todo mundo se parece”. Décadas depois, na capital paulista, ela até tentou criar um pseudônimo literário “mais composto”; porém, Dinha desde nascença, abandonou a tentativa. Ficou melhor, se bem que o carinhoso sufixo “inha” talvez seja o único diminutivo que caiba a esta grande autora de cinco livros de poesia, dois de prosa, criadora de quatro filhas, pós-doutora pela sacrossanta Universidade de São Paulo (USP), envolvida em iniciativas de publicações literárias, integrante do Coletivo Poder e Revolução, entre outros corres. Mas vamos por partes, devagarinha.

Aliás, o principal motivo desta resenha ainda não foi citado, a coincidência numérica macabra entre os 15 anos dos chamados “crimes de maio”, com mais de 500 mortos no revide aos ataques do PCC em São Paulo, e o livro Zero a zero – quinze poemas contra o genocídio da população negra, publicado por Dinha em 2015. Há quem não acredite em coincidências, seriam confluências, arranjos do cosmos. No campo esotérico, não ouso opinar, só indico os fatos, até porque nem tudo é tão óbvio, nem recorrências numéricas, nem a poesia de Dinha, que amplia pontos de vista recorrentes da produção literária das quebradas contemporâneas a partir do Jardim São Savério, zona sul de São Paulo.

As manifestações artísticas da periferia, como o rap, são inteiramente contrárias aos policiais, Dinha também, mas como instituição, não como pessoas específicas, pois ela entende que a luta por direitos humanos não deve excluir ninguém. Conforme expressa no tocante poema “Soldado Sebastião”, o homem fardado que desce a viela e morre de tiro é alguém que os opressores de verdade colocam na linha de frente. Ele ganha mal, nasceu na periferia, está matando seus iguais, ou morrendo nas mãos deles. “Escrevi a partir de um caso que aconteceu aqui onde eu moro. Um policial resolveu descer o beco, alguém atirou nele e ele morreu. Fiquei muito comovida, sinto a dor da pessoa e ele é uma pessoa como a gente, pobre. Eu penso: é ainda a gente se matando.”

Dinha se identifica como as mulheres negras da periferia e suas demandas, apoiando causas como o direito ao aborto, mas defende, sobretudo, a possibilidade delas parirem e criarem suas filhas e filhos. Porém, atenção: a poetisa não está fazendo coro com esses seres desprezíveis ditos “de direita”, apoiadores do atual governo (se é que se pode chamar assim) e seu rol de pretensas verdades. Parir, para Dinha, significa repor vidas que o Estado, de várias formas, elimina sistematicamente, a começar pela família dela. Três parentes seus, mortos pela polícia, tiveram os nomes repetidos em três novos integrantes, nascidos posteriormente: Jefferson, Ricardo e Rivaldo, mencionados no poema “Zero a zero”. Dinha explica: “Quando se fala em feminismo, se fala muito em aborto, é legítimo, mas na periferia a gente está lutando para poder ver nossos filhos crescerem e se tornarem homens adultos.”

Dinha é parideira, em acepção ampla. Tanto que a editora fundada junto a outras mulheres, com o objetivo de dominar todo o processo editorial, disponibilizando gratuitamente as obras, foi batizada, em castelhano, de Edições Me Parió Revolução – “me parió” é “me pariu”, “me deu à luz”. O selo editorial “feminino, negro e independente” quer falar com a América Latina e editou, por exemplo, obra inédita da mãe de todas as escritoras das periferias brasileiras, Carolina Maria de Jesus.

Na conversa que tivemos, em uma manhã de sábado, Dinha fazia café. Percebi que a conversa poderia fluir por horas, mas fui desacelerando. A insistência necessária a todo repórter deveria ceder à percepção de que, em um final de semana, uma mãe trabalhadora quer mesmo é ficar com a família, mesmo que em nenhum momento Dinha tenha expressado tal incômodo, agarrada ao compromisso de continuar parindo sua revolução literária.

E você, se quiser mais, se sentiu este final de texto algo abortivo, está esperando o quê para baixar todo o conteúdo da Edições Me Parió Revolução? Não ramela não, a cabeça da criança está apontando entre as pernas – em linguagem de parto natural, “está coroando”.

Ouça no Spotify da Agência de Notícias das Favelas (ANF) os dois poemas mencionados no texto.

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