Além dos crescentes questionamentos sobre a abolição da escravidão brasileira, presumivelmente extinta em 13 de maio de 1888, a lembrança da data, mesmo que para rechaçar a falácia histórica, nos impede de lembrar que, exatamente no mesmo dia do mês, nascia Afonso Henriques de Lima Barreto, ou simplesmente Lima Barreto, o Lima, nosso mano, nosso truta, nosso chegado, que abriu picadas em diversas frentes de libertação com a sua literatura.
O Brasil, capital mundial de ironias históricas, pariu Lima Barreto em 13 de maio de 1881, sete anos antes da dita Abolição. Daí que, se for para comemorar a data, prefiro pensar no nascimento do escritor, ao invés da assinatura da Lei Áurea. E essa precedência, que completa 140 anos, é somente um dado temporal da lista de pioneirismos do escritor nascido no Rio de Janeiro.
Seu romance de estreia, Recordações do escrivão Isaías Caminha, de 1909, é a primeira obra literária brasileira de fôlego a criticar a imprensa nacional. O protagonista é um jovem preto. Com o livro, o rol de inimigos, sobretudo entre jornalistas e literatos, aumentou consideravelmente, impedindo o acesso de Lima Barreto a jornais e revistas. Diversos personagens se reconheceram na obra e, naturalmente, não gostaram nada, como o laureado João do Rio. Usando termos contemporâneos, o romance faz “crítica de mídia”. Deveria ser um clássico dos cursos de Jornalismo e de outros cursinhos.
Sem cansar o leitor com listagens, e sem esconder os preconceitos de Lima Barreto em relação, por exemplo, às opções sexuais heterodoxas alheias, lembremos de suas posições de vanguarda quanto a temas até hoje polêmicos, como o aborto e a chamada “segurança pública”.
Na crônica A polícia suburbana, que poderia ser lida nos protestos contra a chacina na favela do Jacarezinho, Lima Barreto ironiza os jornais que reclamam contra a falta de policiamento nas periferias. Conclui que, nas delegacias das quebradas, os soldados devem continuar a dormir, pois “se convenceram de que a polícia é inútil”. A crônica é do final de 1914.
Dez dias depois, já em 1915, escreve sobre A lei. O texto narra o caso de uma mulher que, grávida, procura a ajuda da amiga para abortar. A intervenção é desastrosa e a autora do aborto acaba condenada pela justiça “baseada em uma moral que já se findou”. A condenação leva ao suicídio. O escritor, então, pergunta: “Reflitamos, agora; não é estúpida a lei que, para proteger uma vida provável, sacrifica duas?”.
Na maior parte dos seus 41 anos de vida, Lima Barreto morou em Todos os Santos, periferia da então capital da República. Morreu em 1922, meses depois da Semana de Arte Moderna dos paulistanos, da qual alguns parâmetros estéticos estavam em sua obra, como o texto sem excessos ornamentais.
Não excedamos a lista. Melhor você ler, reler e tresler o Lima. Por contraditório que possa parecer, a literatura do nosso grande autor negro, internado, mais de uma vez, por alcoolismo e outros tormentos, fará muito bem à sua saúde.
Esse exu de frente de terreiro, monstrão, contribui para a libertação da nossa arraigada inferioridade intelectual, econômica, temática, de cor de pele, de posturas socialmente ortodoxas, e novamente a lista é longa.
Lima Barreto nos aboliu antes da princesa Isabel. E continua abolindo. Já a Lei Áurea…
Ouça no Spotify da Agência de Notícias das Favelas (ANF) as duas crônicas mencionadas neste texto: https://open.spotify.cm/episode/2Xk4gtAOF7yIw53kUu3LS1?si=Y8X2fWIFSwKg8YnpJ3swgg
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