Existem diversos sentidos possíveis para “marginal” em literatura: por exclusão social ou da crítica especializada, por opção de quem escreve, por estilo de escrita ou formato textual, pelos temas escolhidos e pela própria natureza da literatura, que não costuma lotar estádios. E existe o sentido radical de marginalidade, relativo à ficção produzida no cárcere ou por ex-detentos. Em São Paulo, a safra contemporânea desses autores pariu Luiz Alberto Mendes, um dos representantes mais relevantes daquela que alguns classificam como “literatura do cárcere”.
Diferente de antecessores como Graciliano Ramos, preso político da ditadura Vargas por quase um ano, Mendes praticou crimes que o mantiveram 32 anos encarcerado. Nas cadeias por onde passou, sobretudo no Carandiru, aprendeu a ler, escrever, se apaixonou por literatura, deu aula para centenas de presos e foi o primeiro detento do estado de São Paulo a obter o direito de frequentar faculdade.
Se a literatura tem um sentido didático, potencializado na literatura marginal, que, menos estetizante e mais pedagógica, narra experiências de vida discursando em prol da melhoria das pessoas e da sociedade, na obra de Luiz Alberto Mendes encontramos tanto os aspectos que o aproximam do contexto literário pária, quanto do cânone.
Por uma difundida, difusa e em geral injustificável noção elitista de que escrever bem implica em usar um vocabulário pretensamente culto, encontramos o emprego de palavras de uso restrito em obras de diversos autores identificados como marginais. Acontece com Carolina Maria de Jesus, em letras de rap e nos contos de Cela Forte, de Luiz Alberto Mendes. No caso de quem aprendeu a ler e escrever na cadeia, é plausível imaginar que certas conjugações verbais e expressões encontradas na Bíblia, uma das poucas leituras que entram nas celas, são determinantes na formação do repertório.
Quanto às temáticas dos presídios, claro, estão entre os assuntos da literatura marginal, com a diferença significativa entre falar do mundo bandido de fora e de dentro da cela. Vide, por exemplo, a descrição que Mendes faz da comunicação realizada através dos canos de esgoto da prisão, o “telefone”. A primeira providência é retirar a água e o que mais houver dentro do vaso sanitário, então começa a comunicação. Por essas vias também se “pesca”, transmitindo recados, passando drogas e outros objetos por cordinhas, barbantes, linhas. A vivência descrita torna a coisa mais que real, parece inventada, porque a situação, excepcional, é praticamente inimaginável, ultrapassa os limites corriqueiros e também do ficcional, daí sua enorme atração.
Mas os contos de Luiz Alberto Mendes contêm aspectos que os aproximam de qualidades historicamente canonizadas, como a extrema economia verbal. A narrativa não é só dura, impactante, é concentrada. Desde as primeiras teorizações literárias que nos chegaram, como em Do Sublime, de Longino (ou Dionísio, não se sabe, provavelmente escrito no primeiro século depois de Cristo), passando por literatos como Dom Quixote, filósofos com Schopenhauer, poetas como Pound e Leminski, vale aquilo que a sabedoria popular expressa no ditado “falou pouco, mas falou bonito”. Do universo de escritores marginais brasileiros, João Antônio é talvez o mais enxuto (mas seu vocabulário não desliza para as belas letras, é gíria direto e reto, como em Plínio Marcos).
Entre aproximações e distanciamentos do contexto literário marginal e canônico, Luiz Alberto Mendes é maior do que tais comparações, que quase sempre são tentativas insuficientes de explicação. Desvestido do contexto, das semelhanças e diferenças em relação a outros escritores e escritoras, chegamos à sentença inapelável: ele é um grande escritor.
E provavelmente o seria se nunca tivesse sido preso, se não tivesse vivido a vida bandida, se não nascesse marginalizado na periferia de São Paulo. Talvez por isso raramente escreve sobre seu processo de alfabetização, escrita e descoberta da literatura.
Ele só precisava ter escrito, como o fez. Enquadrado pela lei, Luiz Alberto Mendes transcende enquadramentos. “A tristeza vira texto quando principia, e poesia quando transcende”.
Ouça no Spotify da Agência de Notícias das Favelas (ANF) o conto Concordância, do livro Cela Forte, escrito por Luiz Alberto Mendes. Trata-se de um diálogo entre policial e presidiário, discordante no início, concordante no final. A leitura é do jornalista Marcos Zibordi, correspondente da ANF em São Paulo.
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