LITERATURA DE PERI, PERIFERIA – A queda para o alto, de Anderson Herzer

A importância das memórias do primeiro autor trans publicado no Brasil.

foto: divulgação

Aprendi na escola que estudar o passado era importante porque ajudava a compreender o presente e projetar o futuro. Depois entendi que não é bem assim: nem sempre existem subsídios no retrovisor da História; a atualidade pode ser totalmente nova; o futuro não passa de uma projeção errática, quando existe; e a ideia de movimento progressivo é cartesiana, redutora. Mesmo assim, a visão complexa do vaivém histórico não elimina a primeira ideia, pois há casos em que é fundamental resgatar o passado.

É o que acontece com A queda para o alto, autobiografia Anderson Herzer, que fez sucesso quando veio à público, em 1982, depois foi esquecida e agora reaparece, saudada como pioneira em pelo menos dois aspectos: primeira obra de autor trans publicada no Brasil e primeira denúncia em livro contra os horrores vividos na FEBEM, sigla de um nome que jamais se justificou, pois significava “Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor” – quanto ao “estar”, era depósito desumano de meninas e meninos; para o “bem”, nunca funcionou.

Aliás, permitam-me uma pequena digressão de sociologia linguística: a sobrevivência do nome FEBEM prova que, em geral, a realidade se impõe à maquiagem institucional. Isso porque, em 2006, após 30 anos de horrores, o nome da instituição mudou para Fundação Casa, que significa Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente. Fora a inesgotável criatividade de quem se dedica a bolar esses nomes fofíssimos, o fato é que, pelo menos em São Paulo, na boca do povo o nome continua sendo FEBEM, a sonoridade fechada representando a história escrota.

Voltando à autobiografia de Anderson Herzer: é uma detalhada denúncia em livro da FEBEM, com descrições das agressões, nomes dos carrascos, privações de todo tipo, o combo de ódios e covardias que fomenta a justificada revolta daqueles que saem de lá, quando saem, pois uma das acusações do livro é o encaminhamento injustificado de internas e internos a manicômios, onde realmente enlouquecem.

Sinta este curto parágrafo: “Atrás do pátio, longe dos olhos de qualquer outro funcionário ou menor, tivemos que tirar toda a roupa e nus andamos de joelhos sobre milhos, feijões, pedras e areia durante aproximadamente umas três horas, com um inspetor vigiando.” É chocante, mas lamento informar que existem diversas passagens muito, mas muito mais violentas.

Quanto ao segundo aspecto pioneiro de A queda para o alto, percebeu, na citação anterior, que a voz narrativa é masculina, apesar do local ser uma unidade de internação para meninas? É que o autor, Anderson Herzer, nasceu Sandra Mara Peruzzo, em Rolândia, interior do Paraná, em 1962. Após perder pai e mãe, passou pelas casas da avó e de um casal de tios, até que o machão da casa, o progenitor, o provedor, o fodão, tentou estuprar a sobrinha – na segunda parte do livro, com as poesias de Herzer, o titio merece um poema de resposta.

Apesar da vida familiar que ninguém merece, o pior para Sandra Mara foi se descobrir e se assumir como Anderson Herzer no período de internação na FEBEM, entre os 14 e 17 anos de idade, onde ficou conhecido como Bigode. “O diretor queria, de qualquer modo, que eu raspasse as pernas e usasse vestido, isso sem contar as humilhações que ele me fazia passar perante todas, com palavras de baixo calão, como por exemplo uma frase muito comum com a qual ele se dirigia a mim: – Machão sem saco, machão sou eu que tenho duas bolas”.

O livro de Herzer tem duas partes, a primeira narrando sua sobrevivência na FEBEM, a segunda contendo seus poemas. A escrita parece mais madura na prosa, a poesia prometia chegar longe. No relato de memórias tão sofridas, impressiona a estilística leve, a clareza na descrição, a ausência de gírias; percebemos uma personalidade narrativa gentil, de um autor que manteve a dignidade. E entre tantas perguntas sem resposta, como ele conseguiu aprender a escrever tão bem, inclusive do ponto de vista gramatical?

Nos poemas da segunda parte, extravasa sentimentos represados: mortes, amores, desejos, saudade, silêncios, angústias entrecortadas pela fé (“talvez todos devessem acreditar na ressurreição”), muitas perdas e alguns reencontros. Sem métrica fixa, as rimas são valorizadas, comparecem em diversos encadeamentos, parelhas ou internas, sugerindo que combinações acontecem conforme as oportunidades são possíveis, como na vida de quem tem poucas chances de decidir os movimentos futuros, mas não desiste de procurar harmonias.

Brutalidade e dissonância estão na vida pessoal de Herzer, inevitavelmente no conteúdo daquilo que escreve, mas não na estilística. Infelizmente, sua história pessoal e literária termina com a queda de um viaduto em São Paulo, falecendo em 10 de agosto de 1982, poucos dias antes da publicação da obra. Provavelmente, suicídio – ninguém testemunhou a queda: voluntária ou provocada?

Mas se existe um consolo, ele está indicado na única passagem dos poemas em letra maiúscula, e em voz masculina: “UM HOMEM JAMAIS MORRE ENQUANTO SUA EXISTÊNCIA FOR RECORDADA”.

Conte com nosso esforço para não esquecer, Bigode.

Ouça no Spotify da Agência de Notícias das Favelas (ANF) o último poema escrito por Anderson Herzer (Minha vida, meu aplauso) e um trecho de A queda para o alto. A leitura é do jornalista Marcos Zibordi, correspondente da ANF em São Paulo.

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