Numa esquina do bairro Bela Vista, centro de São Paulo, ganhei um livro. Ganhei enquanto prescrutava, da porta rente à calçada, a pequena reunião do lado de dentro. O local abriga, no amplo sentido do verbo abrigar, a Casa 1, “espaço de acolhida para jovens de 18 a 25 anos que foram expulsos de casa por suas orientações afetivo-sexuais e suas identidades de gênero”.
Leio essa apresentação na coletânea Álbum de Memórias, o livro ganhado. Ele é um rebento de 2022 da Editora Monstra, projeto editorial cujas obras podem ser baixadas gratuitamente para difundir o pensamento LGBTQUIA+, da própria Casa 1.
“O que tenho para contar é algo de antes, diz respeito ao movimento retrógrado da memória de um corpo, hoje, em processo de cura, porém outrora já ferido pela forma como o mundo está implicado em mim”, escreve Dani Silva, pessoa não-binária da zona Leste de São Paulo, cientista social.
A coletânea tem textos em prosa e poesia, e, conforme a citação anterior, as memórias predominam travestidas em descobertas, dores, afirmação, protesto, lirismo, atitude, tesão, repressão, estética (vide o vocabulário e a muy específica ironia viada).
E dignidade; falemos de dignidade, não no sentido óbvio da afirmação de identidades, mas daquilo que iniciativas sociais devem ter como pré-requisito. Minhas doloridas memórias da pobreza se misturaram aos vários sentidos que a palavra adquire enquanto folheio a coletânea, a começar pelo projeto gráfico.
Ele é digno. Não vai revolucionar a história da editoração, não precisa, mas, por outro lado, não é chutado, daqueles cheios de boas intenções, mas feitos pelo “sobrinho que sabe mexer no computador”. É diferente da pretensa ação social que ajuda o pobre dando roupa usada.
Sabe doar roupa usada? Quem ganha, mesmo usando, sabe que é humilhante, apesar da necessidade, também degradante, da roupa alheia. Fica evidente que se recebe o resto.
A coletânea, enquanto objeto livro, editorado profissionalmente e com encadernação colada e costurada, a mais resistente, não é doação de roupa usada.
Atenção futuros moradores do inferno, cheios de boas intenções: se forem doar qualquer coisa, doem novas, nem que só uma peça. Os livros da Editora Monstra são doados. Passe lá, ou no site, e ganhe uma roupa novinha. Pode pegar várias, o guarda-roupas tem diversos títulos.
Ouça no Spotify o 14º episódio do podcast Literatura de Peri, Periferia, com poemas e prosas da coletânea tratada nesta resenha.
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