Magra, vestindo roupas largas e evitando ruas movimentadas, mal dá para perceber que Viviane Nascimento Araújo, de 31 anos, está no oitavo mês de gravidez. Em sua terceira gestação nas ruas, ela se esconde do julgamento de quem passa e, principalmente, das equipes do Conselho Tutelar. Seu primeiro parto aconteceu no dia 14 novembro 2007, em Curitiba.
“Tive meu primeiro filho com 16 anos. O Gabriel nasceu saudável, tive ele em um hospital público no centro da cidade, foi parto normal. Eu vi na incubadora, ele segurou meu dedinho e sorriu. A assistente social e a enfermeira disseram para eu chamar a minha família e voltar no mesmo dia, para amamentar. Voltei poucas horas depois, meu menino não estava mais lá”, conta Viviane, com lágrimas nos olhos.
Aos 14 anos, ela já morava nas ruas. Órfã de mãe, enfrentava violência sexual e doméstica do tio, alcoólatra, que agredia sua tia e as próprias filhas. Viviane passou um ano transitando entre terminais de ônibus e o centro de Curitiba. Eventualmente, passava pela triagem das equipes de assistência social, mas, mesmo sendo adolescente, nunca foi encaminhada para um abrigo.
Aos 15 anos, conheceu a cocaína e o crack e se tornou dependente química. Uma no depois, conheceu Marcos Alceu, de 48 anos, também morador de rua e dependente químico, de quem engravidou pela primeira vez.
“Marcos me acompanhou durante toda a gravidez, ele é alcoólatra, mas não é violento, teria sido um bom pai. Quando dei entrada no hospital, não deixaram ele me acompanhar, por ser morador de rua”, relata Viviane.
Viviane saiu da maternidade 24 horas após dar à luz, em busca do seu companheiro, para levarem o filho para casa da sogra e começar uma nova vida. Mas, ao voltarem ao hospital, em menos de três horas, o Conselho Tutelar havia levado Gabriel para o acolhimento. Viviane e Marcus nunca mais tiveram qualquer informação sobre a criança.
Falta de dados e invisibilidade da população de rua
De acordo com dados de julho de 2022 do Cadastro Único do governo federal, Curitiba é a capital do Sul do país com mais gente em situação de rua. São 3.087 pessoas registradas. Mas as autoridades reconhecem que esse é número subnotificado pela dificuldade de acessar e realizar a inscrição no Cadastro.
A assessora jurídica do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM), da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), Camila Mafioletti Daltoé, aponta a dificuldade em obter dados reais sobre a população em situação rua.
Diante disso, surgem algumas iniciativas, como o Grupo Mães de Rua. Ele une a Defensoria Pública do Paraná, a Rede de Proteção da Infância, profissionais da área da saúde que atuam no Consultório na Rua, além de movimentos socais e do terceiro setor, como a ONG Mãos Invisíveis, INRUA. Inclui também profissionais da prefeitura.
O Grupo Mães de Rua busca evitar o acolhimento institucional de recém-nascidos de mulheres em situação de rua e usuárias de substâncias psicoativas, com atuação nas regionais Boa Vista, Matriz, Cajuru e Portão.
“Não há um mapeamento de quem são essas mulheres, onde elas estão, quais as dificuldades enfrentadas por elas, o que os serviços públicos oferecem para a essa população. Estamos em contato com diferentes instituições que atuam com população em situação de rua para conseguirmos transpor as barreiras da falta de políticas públicas, a mesma falta de políticas que resultem na negação da maternidade para essas mulheres”, afirma Camila.
União em defesa das mães
Tamíres Oliveira, assistente Social do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM) da Defensoria Pública do Paraná também integra o Grupo Mães da Rua e explica que casos como o de Viviane e Marcos são comuns.
“Muitos casos chegam à Defensoria Pública sem que a mãe tenha qualquer informação sobre o processo. A equipe que notificou o Conselho Tutelar, o Ministério Público e todos os outros agentes citados no processo não repassaram qualquer informação à família”.
Tamíres afirma que, em Curitiba, não há políticas de amparo para essas famílias e que o atendimento pelos serviços públicos pode causar medo às gestantes.
“Não há uma casa da gestante, ou casas de passagens que acolham casais. E o fato da gestante estar em uma casa de passagem é visto como negativo, como se a mãe não tivesse a capacidade protetiva para criança. Mas como a mãe que está sendo protegida pelo Estado nas casas de passagem é vista como ameaça? Não faz sentido esse olhar punitivo e conservador”, afirma Tamíris.
Ainda segundo as integrantes do Grupo Mães da Rua, não há uma solução pronta para o problema. É preciso de um trabalho de combate à desproteção social e a efetivação de políticas públicas integradas e efetivas.
“Campinas tem uma casa de acolhimento para gestantes em situação de rua, existem situações de êxito e respeito para maternidade dessas mulheres. Precisamos romper com o olhar conservador e cumprir o papel do Estado em proteger essa população”, afirma Camila.
A luta diária pelo direito de ser mãe na rua
Em frente ao terminal de ônibus do Guadalupe e ao lado da Igreja de mesmo nome, Isabel Cristina Lopes aguarda seu filho chegar da escola. Não citaremos seu nome, mas ele tem quatro anos e estuda em um dos Centro Municipais de Educação Infantil (CMEI) do centro de Curitiba. Seu pai, Josimar Silva, leva e busca Bruno todos os dias na escola.
“Já me denunciaram na escola por eu ser sem teto, chamaram o Conselho Tutelar, mas eu e o Josimar sempre dormimos em lugares diferentes, não ficamos nos mesmos espaços, não vão levar meu filho”, afirma Isabel.
Bruno é o segundo filho de Isabel e o quinto de Josimar. Isabel também é mãe de Maria Aparecida de Jesus, que nasceu me 2011 também em Curitiba. Josimar tem quatro filhos dos quais não possui a guarda.
Isabel se separou de sua filha com menos de seis meses de idade, quando a justiça determinou que ela não apresentava condições de exercer a maternidade e sua filha foi encaminhada para uma casa de acolhimento de crianças e adolescentes.
Dois dos filhos de Josimar moraram com os avós até os oito e seis anos, quando também foram acolhidos pela Justiça e logo foram destituídos do poder familiar e seguiram para adoção. Seus outros filhos, nascidos 2018 e 2020 vivem com a irmã de Josimar, que os visita aos finais de semana.
Em seu primeiro parto, Isabel sofria de dependência química e foi encaminhada, junto com a filha, para um centro de reabilitação. Mas, assim que terminou a estadia determinada pela Justiça Estadual, sua filha foi encaminhada para o acolhimento institucional e Isabel e nunca mais teve notícias.
Destituição está prevista no ECA
De acordo com a advogada Bruna Bhal Emiter, essas decisões de acolhimento e destituição seguem o artigo 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que institui que na falta de recursos materiais, a família deve ser encaminhada a serviços e programas oficiais de proteção e apoio.
De acordo com Bruna, o sistema judiciário identifica a falta de consultas médicas, sintomas de abstinência, e vícios são usados como elementos que justificam a retirada da criança da mãe.
“Infelizmente, a Justiça pune as mães, pais, famílias com decisões punitivistas e preconceituosas. Não é oferecido para essa mãe a maternagem, as condições são apenas para punir. Há pouco esforço em procurar a extensão familiar ou sequer procurar o pai. É todo um sistema para punir mulheres e crianças”, afirma a advogada.
Depois de experiências tão ruins, Isabel e Josimar não confiam nos serviços de atendimento à população de rua. Evitam postos de saúde e até mesmo o Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI)
“Lá eles não sabem ainda que moramos na rua. Todo o dia eu recolho meu colchão, minhas coisas, e mudo de lugar. Eu e meu filho tomamos banho em uma pastelaria que me cede o banheiro. Logo iremos para uma ocupação, começar a nossa vida, mas por enquanto é isso. Eu tenho medo da professora querer tirar ele de mim”, preocupa-se Isabel.
Eu nunca abandonei
“Eu nem sei como é o rosto dele. Rezo todos os dias para que Gabriel esteja bem e seja amado como eu o amo, mesmo sem conhecer. Eu acredito que Deus deu um lar com amor para ele”, diz Viviane.
“Às vezes eu ando nas ruas olhando para as meninas da idade de Maria Aparecida. Ela tem 12 anos. Olho todas as meninas mesmo, as dentro do ônibus, de escola particular, de rua, eu vejo se é meio parecida. Eu quero encontrar ela, nem que seja para dizer que eu nunca a abandonei, que eu sou a mãe dela”, afirma Isabel, em lágrimas.
A história de Viviane, Isabel e de tantas outras mulheres convive diariamente com a saudade, a dor e a incerteza sobre como e onde estão seus filhos. Segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existem quase 34 mil crianças e adolescentes abrigadas em casas de acolhimento e instituições públicas por todo país.
Destas, 5.040 estão totalmente prontas para a adoção, sendo 1.203 crianças encaminhadas para adoção por destituição familiar.
Conselho Tutelar explica procedimentos
Claudia de Lara, coordenadora do Conselho Tutelar de Curitiba explica que quando recebem notificação de gravidez ou sobre crianças em situação de rua, o primeiro passo é acionar a rede de proteção à infância, realizar a busca ativa por familiares e buscar a amparo da pessoa gestante. Somente quando são esgotadas todas essas alternativas, começa o processo de destituição familiar.
A destituição familiar é o processo legal em que a autoridade competente decide retirar a guarda de uma criança de seus pais ou responsáveis devido a situações de abuso, negligência grave ou outras circunstâncias que coloquem a criança em risco.
A destituição familiar ocorre quando é determinado que o ambiente familiar não é seguro ou adequado para o bem-estar da criança. A decisão é tomada visando proteger seu interesse, garantir segurança e desenvolvimento saudável.
Já o acolhimento é uma medida de proteção que busca oferecer um ambiente temporário para crianças que foram removidas de suas famílias devido a situações de risco. O acolhimento pode ocorrer em instituições especializadas, como abrigos ou lares substitutos, onde as crianças recebem cuidados, apoio emocional e a oportunidade de desenvolver-se em um ambiente estável enquanto as circunstâncias familiares são avaliadas.
A destituição familiar envolve a perda da guarda da criança pelos pais ou responsáveis legais. O acolhimento é uma medida temporária. O objetivo final é sempre buscar a reunificação familiar quando for possível e seguro para a criança, ou, quando necessário, encontrar uma família adotiva.
Raíssa Melo
Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.
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