Helena. FOTO:
Manifestação por moradia em Curitiba em agosto. Cidade exclui os pobres. FOTO: Leonardo Costa

Ruas sem asfalto e sem calçadas, casas de madeira, campinho de futebol de terra, mercadinhos, armazéns, brechós, crianças brincando na rua, pipas no céu e vizinhos ajudando a construir a casa de novos moradores são características comuns às mais de 400 ocupações de moradia de Curitiba, capital do Paraná.

Segundo levantamento de 2021 da Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab), 51.341 mil famílias moram irregularmente em 453 ocupações da capital paranaense. Por regional administrativa, os números são os seguintes:

Boa Vista = 108

Cidade Industrial de Curitiba (CIC) = 71

Cajuru = 61

Santa Felicidade = 56

Bairro Novo = 37

Pinheirinho = 35

Boqueirão = 33

Portão = 27

Tatuquara = 22

Matriz = 3

A pesquisa da Cohab foi feita para reunir informações sobre as características das áreas e, a partir daí, avançar na legalização de terrenos e imóveis, levando em conta a realidade de cada regional. Enquanto isso, as 453 ocupações de moradia vivem o medo constante do risco do despejo.

Como são as ocupações de moradia em Curitiba

Localizadas em geral em espaços abandonados há mais de cinco anos, pertencentes a empresas falidas, órgãos públicos ou proprietários com dívidas de impostos e documentação irregular, as ocupações de moradia estão presentes em todas as dez regionais administrativas de Curitiba.

Concentração por moradia em frente à regional Tatuquara. FOTO: Leonardo Costa

Os moradores são famílias esperando por um programa de moradia popular e sem condições de pagar aluguel. A única maneira de construir uma casa e tentar uma vida em condições minimamente dignas foi entrar para a luta por moradia e viver em ocupações.

Esses espaços não têm saneamento básico, mas fossas; a luz elétrica vem da compra de postes e distribuição feita pelos próprios moradores; calçadas, praças e pavimentação da rua também são obras dos ocupantes. O acesso às políticas públicas e demais direitos é uma luta das 453 ocupações de Curitiba.

Capital planejada é clichê: Curitiba exclui os pobres

Localizada na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), a ocupação Tiradentes reúne aproximadamente 1.500 pessoas, a maioria famílias compostas por casais e dois filhos. Eles vivem em casas de madeira, ruas de terra e enfrentam a distância até os pontos de ônibus.

“Como a prefeitura não reconhece esse espaço, não há estrutura, nossas crianças caminham cerca de dois quilômetros para pegar ônibus em ruas perigosas e sem calçada. Se já é perigoso para nós, adultos, imagina para as crianças”, diz Carla Oliveira, liderança da ocupação.

O acesso ao transporte público também é difícil aos moradores da Vila Torres, antiga Vila Pinto, maior ocupação de moradia da regional Portão. Com 67 anos de existência, é uma das ocupações mais antigas da cidade, mas ainda não possui toda sua área com regularização de luz e água ou ruas pavimentadas.

Carla Oliveira, liderança da ocupação Tiradentes, com 1.500 pessoas. FOTO: Raissa Melo/ANF

Melhorias no entorno, não na comunidade

Por ser uma comunidade no meio da cidade, estar localizada no caminho para o aeroporto e próxima a duas universidades – Universidade Federal do Paraná e Pontifícia Universidade Católica do Paraná – a Vila Pinto é uma das mais conhecidas, dentro e fora de Curitiba.

“Não tem como esconder a vila, a gente está no meio da cidade. Tem um rio e somos vistos por quem chega de avião e precisa passar por nós para chegar no centro, como também somos caminho para quem quer ir ao Jardim Botânico. Mas faz pouco tempo que tem ônibus que entra na comunidade. Antes era só nos arredores”, afirma Rosa Silveira.

Ela vive há mais de 30 anos na comunidade. Seus filhos e netos sempre moraram no local e relatam as mudanças que acreditam ser comuns em todas as ocupações.

“A gente sabe que a reforma das ruas aqui é para os estudantes da PUC, que estão a duas quadras e precisam passar com seus carros. Não tem arrumação de calçada ou obras para que o rio não alague nossas casas. O que acontece de reforma estrutural é em volta da comunidade, não é para a comunidade”, afirma Rosa Silveira.

Rosa Oliveira, da Vila Pinto, ocupação conhecida de Curitiba. FOTO: Raissa Melo/ANF

Solidariedade resolve o que o poder público despreza

O poder público não resolve as necessidades dos moradores. Segundo Rosa, “o que salva ocupação de moradia é o povo solidário, como o motorista de ônibus que, gente como a gente, abre as portas de trás pra subirmos e trabalharmos. À noite, entra na vila, mesmo não sendo trajeto da linha.”

Além dos motoristas solidários, as ongs fazem festa de Dia das Crianças, Natal e outras comemorações, além de movimentos sociais que “somam no enfrentamento à violência policial, descaso com as enchentes e outros perrengues que gente passa. Acho que é assim em todas as ocupações do mundo”, diz Rosa Silveira.

Não pagar aluguel e ficar perto dos filhos

“Quando eu morava de aluguel, eu não dormia com medo de não conseguir pagar as contas e não ter o que dar de comer para as crianças. Todo meu dinheiro ia para o aluguel. Nunca tive medo da fome. Morando na ocupação Britanite, o medo é das operações da polícia”, compara Rosana Carla da Cruz Gonçalves, mãe de duas crianças.

A mãe, de 27 anos, o marido e seus dois filhos, de um e quatro anos, vivem na Britanite desde o início da ocupação. “Nestes três anos de luta, cada dia eu acredito mais na força do movimento de moradia, que luta por moradia e por dignidade. Todo mundo tem o direito de ter um lugar digno para viver com sua família”, aprendeu Rosana.

Segundo ela, não pagar aluguel é muito significativo, especialmente para as mulheres mães. “Muitas de nós, para manter o aluguel, trabalhávamos os três turnos e finais de semana, sem com nossas crianças. Hoje, na ocupação, muitas mães trabalham no bairro, conseguem almoçar com os filhos e voltar ao trabalho. Ou, em muitos casos, abriram comércios dentro de casa. Conseguimos nossa independência e qualidade de vida com a família”, relata Rosana.

Rosana Gonçalves, da ocupação Britanite: “medo é das operações da polícia”. FOTO: Leonardo Costa

Imigrantes também lutam por casa própria

O desafio de pagar o aluguel com um salário mínimo, ou menos, atrai imigrantes para as ocupações de moradia. De acordo com Juan Alexandro Zacarias, venezuelano e morador da ocupação Pantorala, o maior número de imigrantes são os haitianos, seguidos dos venezuelanos e colombianos. Todos vivem em situação de vulnerabilidade nas ocupações de moradia, alimentando o sonho de recomeçar a vida com um lar próprio.

“Lutamos para ter nossas casas junto à nossa família. A maioria de nós imigrantes tem dificuldade com mercado de trabalho, principalmente por causa da língua e do preconceito. O trabalho que conseguimos mal dá para alimentação, e quase todos sonham em poder trazer a família, que ainda está em outro país. Se não estivermos junto ao movimento de moradia, nós, imigrantes, iremos morar na rua”, resume Juan.

Haitianos, venezuelanos e colombianos estão nas ocupações. FOTO: Leonardo Costa

Ordens de reintegração de posse

Na regional da Cidade Industrial de Curitiba (CIC) está o maior risco de despejos forçados iminentes da cidade. As comunidades Britanite, Vila União, Ilha e Pontarola enfrentam pedidos de reintegração de posse dos terrenos.

De acordo com a Comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça do Paraná, essas quatro comunidades somam mais de 1.000 pessoas para as quais o Estado não tem um plano de realocação consistente. Segundo a Cohab, durante a pandemia do coronavírus, cerca de 4 mil famílias ocuparam 14 áreas irregulares em Curitiba e Região Metropolitana.

Ao mesmo tempo, mais de 50 mil famílias aguardam por um imóvel, enquanto os dados do Censo populacional de 2022 escancaram a contradição social: mais 103 mil domicílios estão desocupados na capital paranaense.

Poucos proprietários querem mediar conflitos

O procurador Olympio de Sá Sotto Maior Neto explica que durante a pandemia o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu o despejo através da chamada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828.

Para procurador Olympio Neto é preciso ter estratégia de retomada. FOTO: Arquivo pessoal

Ela assegura a suspensão temporária de desocupações e despejos, inclusive para as áreas rurais, para resguardar o direito à moradia e à saúde de pessoas vulneráveis. De acordo com Olympio Neto, neste ano o Supremo Tribunal Federal (SFT) determinou que os tribunais formem comissões para mediar eventuais despejos.

“O documento propõe que as comissões façam visitas técnicas no território e audiências de mediação antes de uma reintegração de posse acontecer. A principal função das comissões é propor a estratégia de retomada” das remoções “de maneira gradual e escalonada”, explica Olympio Neto.

Para o padre Joaquim Parron, atuante em grande parte das ocupações de moradia da capital, mesmo com a indicação STF existe muita resistência dos donos do terreno em participar das mediações de conflito.

“Existe uma diferença entre moradia e propriedade: moradia é um direito básico de todo o ser humano, uma necessidade vital, não há escolha, não opção de não ter moradia. Propriedade privada é um benefício que, nos locais onde acontecem ocupações, ela está desocupada, vazia. Nós precisamos sempre escolher a vida”, explica o padre Parron.

Para Padre Parron, moradia é direito, propriedade é privilégio. FOTO: Arquivo pessoal

Reportagem acompanha passeata por moradia

A Frente de Organização dos Trabalhadores (FORT), movimentos sociais e parlamentares realizaram a Caminhada Popular por Moradia e Contra Despejos em 15 de agosto, com dois pontos de partida em Curitiba: ocupação Britanite e Ocupação Vila União. Os dois grupos se encontraram em frente à regional Tatuquara.

O local de encontro foi estrategicamente definido: as regionais são locais destinados a operacionalizar, integrar e controlar as atividades da prefeitura nos 75 bairros da cidade. Curitiba possui 10 regionais, a maioria próxima a terminais de ônibus, com serviços administrativos e espaços de lazer diversificados. Não é caso da regional Tatuquara.

Helena Montilla enfrenta preconceito para acessar direitos básicos. FOTO: Raissa Melo/ANF

Apesar de estar próxima a um terminal de ônibus e ter uma pista de skate atrás do prédio administrativo, o espaço não é acolhedor aos moradores. Helena Montilla, 83 anos, avó de quatro netos, explica o quanto é difícil o acesso à regional Tatuquara, principalmente se a pessoa residir em uma das ocupações.

“A regional só olha para as ocupações com raiva, sem soluções e com muito preconceito. Todas as vezes que eu vou na regional, seja para tentar matricular as crianças nas aulas de música e leitura, ou para resolver algum problema meu, eu só escuto que morar na ocupação não é certo e que preciso sair de lá. Quando eu conto que não tenho como pagar aluguel, eles ficam em silêncio”, relata Helena.

Passeata termina com reunião e nenhuma solução

Os manifestantes da Caminhada Popular por Moradia e Contra Despejos foram recebidos por uma comissão de negociação composta por:

Marcelo Ferraz, representando a regional Tatuquara e, portanto, a prefeitura de Curitiba;

Supervisora do núcleo regional da Fundação de Ação Social (FAS), Cíntia Aumann;

José Lupion Neto, presidente da Cohab;

Dois representantes do Ministério Público:

Aline Bilek Bahr, do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Proteção ao Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo;

Olympio de Sá Sotto Maior Neto, procurador de justiça, da promotoria de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos.

Apesar da ampla mesa de negociações, não houve respostas dos órgãos competentes, além de recusa das autoridades em marcar uma próxima agenda. Nas redes sociais, a FORT divulgou um vídeo sintetizando os próximos passos da luta.

“Temos uma sinalização, fizemos uma caminhada, com intensa participação do povo. Mas ainda teremos que seguir na pressão para garantir esses espaços, a mediação da prefeitura e a abertura da empresa à negociação”, afirma o vídeo.

Prefeitura orienta famílias a procurarem a Cohab

A reportagem procurou a Prefeitura de Curitiba para obter um posicionamento sobre a reivindicação dos moradores de ocupações. Em nota, o município apenas explicou o processo de inscrição na Cohab.

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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