Quando você chegou meu santo já estava: a frase da mãe de santo Neire, do Complexo do Alemão, dá nome ao documentário sobre religião e territorialidade exibido na manhã deste sábado, 02, no Cinecarioca Nova Brasília. O filme é uma produção do Faveladoc, projeto do Instituto Raízes em Movimento formado por 14 moradores de favelas e periferias do Rio de Janeiro.
Desenvolvido a partir de pesquisas sobre a própria história da favela, o documentário busca resgatar as relações afetivas dos personagens com o território e a religião, compreendendo como ambos se relacionam de forma íntima com as memórias e ancestralidade no Alemão. Ele surgiu na segunda edição do Faveladoc, iniciativa do Raízes em Movimento que oferece formação em audiovisual para moradores de diferentes favelas e periferias do Rio e teve início em dezembro de 2016. As aulas incluem técnicas de filmagem, edição, montagem, captação de som, entrevista e enquadramento, documentário e jornalismo. O objetivo é democratizar a linguagem audiovisual.
Quando você chegou meu santo já estava não é um filme didático sobre umbanda e candomblé. A produção audiovisual traz à tona a identidade cultural atrelada às religiões de matriz africana dentro da comunidade e representa a raiz histórica do tema. Antes do preconceito, da intolerância, dos moradores, da urbanização, os centros religiosos já estavam lá. Eles fizeram parte da construção do Alemão e ainda fazem parte da sua história, mesmo que em menor número.
O projeto nasceu em um momento de grande intolerância para as religiões de matriz africana no Rio e no Brasil. Mais de 39 casos de intolerância foram registrados no Estado do Rio. Somente este ano, a Casa do Mago, localizada em Humaitá, Zona Sul do Rio, sofreu por volta de três ataques frutos do preconceito. Também foram diversas as ocasiões em que casas religiosas foram depredadas em favelas, muitas a mando de traficantes locais.
A maioria dos seis entrevistados de Quando você chegou meu santo já estava afirma que o tráfico nunca interferiu nas atividades dos terreiros e casarões da comunidade. Mas todos relatam agressões praticadas diretamente pelos próprios moradores da região, seja fisicamente ou pelo preconceito no dia a dia.
Para Renato Tutsis, que divide a coordenação do projeto com David Amén, uma das maiores preocupações na narrativa do documentário foi manter o equilíbrio entre as representações de umbanda e candomblé, deixando claro que o “enfoque não seria uma ou outra religião, e, sim, as relações dos entrevistados com o território onde vivem e com os moradores”. O sentimento de conexão trazido pelos personagens fica evidente com a narração de historias da época em que o acesso à água e eletricidade eram difíceis, e seus processos de compreensão da própria fé e religiosidade dentro de suas famílias.
O processo de pesquisa para a escolha do tema teve início nos primeiros meses des 2017, quando os integrantes do Faveladoc pensaram em mais de 20 temas relacionados ao Alemão e sua história. A pesquisa para possíveis entrevistados ganhou vida por meio de uma rede de pessoas que poderiam sugerir nomes relacionados com o tema. Lucimar, outra das personagens do filme e responsável por indicar diversos centros e terreiros no CPX, chegou ao grupo por meio de outro projeto do Instituto Raízes em Movimento, o Raízes Locais.
– Foi um processo de muita dedicação e esforço. Foi necessária uma pesquisa intensa, um levantamento de todos os terreiros do Complexo do Alemão, uma pesquisa e resgate de memória. Foi bem trabalhoso bater de porta em porta pra conseguir falar com os responsáveis dos terreiros, explica a educadora e uma das participantes do Faveladoc Silvana.
A produtora cultural, comunicadora, estudante de publicidade e moradora do Alemão Nathália Menezes, que auxiliou a turma na exibição no Cineclube, acredita que, além da importância de representar as memórias sobre religiões de matriz africana no Alemão, também é importante representar o amor que conduz todas elas e o impacto no território. “Assistir a um filme em uma telona de cinema, que traz uma memória afetiva em relação ao lugar onde moramos, irá trazer um outro impacto, principalmente para os que participaram de forma direta e indireta neste processo”, opina Nathália.