Era uma noite como todas as outras. Não! Como todas as outras não. Essa noite era diferente. Minha mãe havia chegado em casa mais cedo. Raramente, isso acontecia. Eu dormia em cima do caderno a esperando chegar do trabalho para contar o que eu tinha aprendido. Sempre acordava lentamente ao ouvir sua voz ao longe. Minha vó sussurrava: “A menina dormiu esperando você. Você precisa tentar trabalhar menos, minha filha”.
Minha mãe não parava, nunca. Estava sempre trabalhando. Esses dias mesmo, enquanto preparava um discurso para a formatura de alunos de programação do Morro do Prazeres e do Complexo do Alemão, eu me peguei trazendo referências da minha mãe e do quanto eu ainda lembrava, mesmo quase dez anos após sua partida, do suor dela e do toque aveludado da sua mão. As memórias afetivas estão entre as poucas coisas que não podem nos tirar. Você já parou pra pensar nisso?
Eu ainda posso me lembrar do cheiro do alho sendo ensacado no sofá da sala para serem vendidos no outro dia. Lembro da época em que ela vendia aqueles sorvetes em máquina de garrafas de vidro. Lembra disso? Eu lembro até mesmo do barulho que a roupa fazia enquanto ela esfregava tudo na bacia de alumínio da minha vó.
Ela sempre fez questão de me contar todos os detalhes. Sempre me mostrou fotos antigas, que eram carregadas de memórias afetivas que ela mesma construiu ao longo do tempo. Das amizades e inimizades que fez, de cada questão e ato racista que vivenciou na casa das patroas. Da agressividades dos policiais de Minas Gerais em dia de jogo no Mineirão. Minha mãe formava um documento visual que era transferido da sua memória para a minha, e eu ia construindo tudo do meu jeito.
Mas, como eu dizia, era uma noite diferente, ela tinha chegado cedo e, mesmo que eu já estivesse dormindo, acordei. Acordei, abracei minha preta, ainda com a roupa de trabalho, e ela me colocou pra dormir, contando uma historinha. As histórias eram sempre reais, sem princesas, sem principes ou sapos. Nós sempre éramos as protagonistas.
Esse mês, eu me peguei com saudade de algumas imagens, mas não pude revê-las. A maioria foi levada pela água das inúmeras enchentes que vivenciamos. Outras, destruídas em campanhas religiosas da qual participamos – só hoje percebo o tamanho da violência que fizeram com a nossa memória ao destruírem algo tão simbólico e incrível.
Lembranças para Gramacho
As paredes da minha casa têm história, e nelas estão marcadas cada etapa desses 30 anos que vivi. Meu quintal traz o cheiro dos churrascos que fizemos, traz o som das músicas que dançamos e das gargalhadas que demos.
Olho para as árvores e posso perceber que muitas primaveras já se passaram. E o que dizer do nosso chão? O nosso chão contabilizou cada caminhar que precisamos dar pra avançar mais um desafio.
Eu me peguei lendo sobre as famílias do antigo Lixão de Gramacho, desativado em 2012. Eu sequer tive coragem de visitar o lugar uma vez na vida. Minha irmã já esteve lá. Eu não. Eu acredito que não conseguiria ver a dor daquelas pessoas e voltar pra casa – voltar para as minhas lembranças.
Penso em quantas crianças vão ter apenas a fome, o tráfico de drogas, as armas, os policiais em seus confrontos e trocas de tiro. Penso em quais memórias afetivas eles vão levar pela vida. Eu me questiono qual é o futuro que essas crianças e adolescentes vão ter quando seus pais se forem. Quais vão ser as forças capazes de segurá-los no chão quando aquelas que estão dentro de nós se esgotarem?
A extrema pobreza mora a menos de 8 km da minha casa. Lá, mais de 20 mil pessoas convivem com ratazanas e em casas feitas com restos de outras obras. Nesse lugar, não existem memórias de café na mesa, de ceia de natal ou luzes de pisca-pisca.
A lembrança de todo dia são das rezas, porque amanhã precisa ser um dia diferente. Amanhã é preciso correr atrás dos R$ 3 pra comprar, ao menos, um pão ou o leite.
Paro de ler as notícias no jornal e volto para as minhas melhores e piores lembranças, afinal, eu bem sei o que é dormir com fome, comer feijão congelado por uma semana e andar em uma carroça com cheiro de chorume, depois de passar o dia inteiro desparafusando caixas metálicas e desenrolando cobre para vender no ferro velho e assim garantir o jantar do dia.
Reuno todas as minhas lembranças e estratégias e sigo tentando construir o melhor pra que essas e outras crianças e famílias possam ter ao menos o direito de acreditar que um dia ao menos deixarão de herança aos seus boas histórias pra contar.
Precisamos seguir acreditando que, como diz o provérbio africano, “Muita gente pequena, em muitos lugares pequenos, fazendo coisas pequenas, mudarão a face da terra”.
Precisamos continuar para construir esse mundo, mesmo que ele esteja a alguns metros de nós.