Carta aberta em resposta ao policial civil Beto Chaves.
Ontem, 26 de junho de 2019, em evento realizado no interior da faculdade Universo, em Niterói, o policial civil Beto Chaves, conhecido por seu valioso trabalho para além das funções policiais, ao ter o microfone para responder às duas perguntas que lhe foram feitas, ao invés de fazê-las se ateve a comentar minha fala, que o antecedeu. Como belo debate democrático que foi, proposto e alcançado, respeito o direito de manifestação do policial. Entretanto, como o evento foi encerrado logo após sua fala, me foi negado o direito de resposta. Porém, acho por bem pontuar alguns pontos de sua interessante porém questionável fala, tendo em vista que o público que assistiu, e me é testemunha, possa ter ficado desejoso da minha resposta. Bem como, a Constituição Federal me assegura o direito da mesma.
O policial ficou muito incomodado com minhas manifestações relacionadas à atuação policial. Não é toda pessoa branca, sobretudo que faça parte do sistema de justiça criminal, que está preparado para ouvir que a guerra às drogas é uma farsa, que é um mecanismo de controle de CORPOS PRETOS. Guerra às drogas é guerra aos pobres e Raul Santiago define muito bem ao afirmar: “A favela fica com a guerra e o asfalto com as drogas.”
O ato de falar da instituição ao afirmar “nós temos a polícia que mais mata no mundo” incomoda. Eu entendo. Mas vale ressaltar que tais dados são levantados acerca da atuação da instituição como um todo, tendo em vista que é fato raro no judiciário carioca a responsabilização individual de agentes do estado que cometem homicídios fora do abono da legítima defesa. Segundo pesquisa do professor e delegado civil Orlando Zaconne, 99,2% dos autos de resistências do Rio de Janeiro são arquivados.
Se os agentes policiais de bem, como entendo que é o caso do policial em questão, apontassem seus companheiros de farda que agem ao arrepio da lei, nós não precisaríamos generalizar em nome da instituição. Mas entendemos: é mais fácil falar o famoso “mas nem todos os homens” do que fazer a autocrítica das nossas responsabilidades, seja por ação ou omissão.
Não transfiro à polícia a culpa de todos os problemas da (in)segurança pública do país. Obviamente, sei que é um projeto de Estado, um projeto histórico de racismo e eugenia, conforme mencionei ontem! Não à toa sou insistente na fala de que o problema é TODO o sistema de justiça criminal, e que o mesmo tem que acabar. Se o policial assistisse minha aula de 4 horas sobre o assunto alcançaria a totalidade do raciocínio exposto por mim na mesa, porém, de qualquer maneira, precisa estar preparado pra ouvir verdades difíceis de engolir.
Entretanto, a polícia é a ponta dessa lança e deve ser responsabilizada na medida da sua atuação. Como muito bem expõe a legislação vigente, cada um é responsável na medida de sua participação ou culpabilidade (Artigo 29 do Código Penal), e quem está, a critério de exemplo, dando tapa na cara de pastor evangélico dentro da minha favela não é o governador ou o presidente, é o policial militar da UPP local (fato real vivenciado no Jacarezinho em 2016).
Por fim, e mais relevante, o policial expôs na reta final de sua fala, após perguntar se meu pai ainda estava vivo, que: “o fato de seu pai (traficante) ainda estar vivo mostra que ele só lidou com policiais corruptos ou incompetentes” (sic). Além da crueldade da fala, ao abordar a
morte do familiar de alguém presente, nos leva ao seguinte questionamento: seguindo a lógica da afirmação eu pergunto, o policial incorruptível e competente é o assassino?
Em um país com 60 mil homicídios por ano, que mata mais pessoas do que a guerra da Síria, em um Estado que tem a polícia que matou 25% do total de mortes realizadas por toda a polícia do país (Atlas da Violência 2018), mesmo que nesse território esteja apenas 8% da população nacional, a afirmação do respeitável policial ”passa pano” pra política de homicídios racializada implementada pela polícia do estado do Rio de Janeiro, da qual 77% das vítimas são pessoas pretas, alem de ser simbólica é assustadora. Ainda que não tenhamos pena de morte no Brasil a mensagem de que temos um tipo de brasileiro “matável”, o traficante do morro porque o do asfalto está andando no avião presidencial, está enraizada entre os brasileiros. Inclusive entre membros do sistema de justiça criminal, sejam eles “progressistas” ou conservadores, garantistas ou punitivistas, pois são duas faces brancas da mesma moeda.