A população de baixa renda que vive nas periferias é a que mais sofre para se deslocar nas cidades. Esse problema, juntamente com outras desigualdades socioeconômicas, raciais e de gênero, foi ainda mais exacerbado com a pandemia do novo coronavírus.
Compreender essas desigualdades é fundamental para discutir a mobilidade urbana e as possibilidades no setor de transporte público, privado e ativo (bicicletas, patinetes e caminhadas). Essa foi uma das tônicas do Summit de Mobilidade Urbana 2020, promovido pelo jornal O Estado de S. Paulo em parceria com a 99, empresa de aplicativo de transporte, na quarta-feira (12).
Com o tema “Inovar para incluir: novos caminhos para que as cidades sejam mais diversas e democráticas”, o evento reuniu mais de 25 especialistas que debateram questões importantes para melhorar o transporte e promover um ecossistema de mobilidade mais eficiente, acessível, justo, inclusivo e sustentável, de modo a envolver não só os que moram nas regiões centrais, mas, sobretudo, os que vivem afastados delas, incluindo idosos e pessoas com necessidades especiais.
O impacto do coronavírus e o pós-pandemia também estiveram no centro das discussões. Os riscos de contágio levaram as pessoas a repensar suas escolhas de deslocamento diário e por outro lado as empresas de transporte tiveram que se ajustar rapidamente ao chamado “novo normal”, como foi o caso da 99.
Transporte por aplicativo
Com 20 milhões de usuários distribuídos em 1.600 cidades em todo o Brasil, a 99 encomendou uma pesquisa para entender melhor as mudanças de comportamento de seus clientes durante a pandemia e o impacto do coronavírus no cotidiano deles.
O levantamento revelou que a maioria das corridas via aplicativo aconteceram fora do centro expandido das cidades. Do total de entrevistados, 20% precisaram trabalhar todos os dias durante a pandemia. Entre as pessoas das periferias, mais de 80% afirmaram ter tido a sua economia doméstica impactada. “A gente percebeu que realmente o isolamento e o home office são privilégios das classes sociais mais altas”, disse Pâmela Vaiano, diretora de Comunicação da 99.
As pessoas das zonas periféricas passaram a usar mais o aplicativo durante a pandemia, tendo um aumento de 55%, enquanto as pessoas das classes mais alta diminuíram. “Isso fica claro o quanto as pessoas estão sendo acometidas pelo problema do isolamento e como elas buscam uma alternativa. Nosso papel é contribuir para um transporte acessível e seguro”, afirmou a diretora de Comunicação da 99.
A empresa lançou categorias mais baratas, buscado subsidiar o preço das tarifas das periferias com valores diferentes nos centros expandidos. “A gente entende o quanto essa pandemia vem acelerando algumas desigualdades e fazendo com que o transporte por aplicativo tenha um papel de trazer um apoio de segurança para essas corridas em torno da cidade”, completou Pâmela.
A pesquisa também revelou que o medo da contaminação atinge grande parte das pessoas entrevistadas. No entanto, mais de 50% delas já abandonaram o isolamento nos últimos três meses e muitas delas estão preferindo o transporte ativo como forma de se proteger das aglomerações. “Sabemos o quanto andar a pé ou de bicicleta tem sido uma grande oportunidade para as pessoas fugirem das aglomerações, mas é importante que a gente assuma que isso não é acessível para todos, ainda é necessário grandes deslocamento para muitos e há outras necessidades que precisam ser atendidas por diferentes tipos de pessoas, como as mulheres, por exemplo”, ressaltou Pâmela.
Não à toa, as mulheres hoje são a maioria entre os passageiros da 99. “As mulheres não detêm carro, moto ou bicicleta tanto quanto os homens no Brasil e elas que são responsáveis pela economia dentro de casa, por carregar as crianças”, justificou ela.
Desigualdades refletidas no transporte
A questão de gênero também foi apontada por Guilherme Braga de Oliveira Alves, pesquisador da Casa Fluminense e coautor do “Mapa da Desigualdade 2020”. O estudo abrangeu 22 municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro e se baseou em dez eixos temáticos, relacionados a direitos sociais. Os dados foram analisados sob as lentes das justiças econômica, racial, socioambiental e de gênero.
“Homens e mulheres têm vivências e padrões de deslocamento diferentes na cidade e um dos elementos mais perversos é a violência sexual no transporte”, afirmou Guilherme.
De acordo com o pesquisador, os dados raciais também deveriam ser levados em conta no planejamento de soluções de mobilidade urbana nas cidades, mas atualmente são ignorados. Ele destacou que das mortes por atropelamento ferroviário no Brasil, 42% ocorreram na região metropolitana do Rio de Janeiro, ou seja, a cada cinco pessoas que morreram atropeladas por um trem no país, duas estavam no Rio, e mais de 80% delas eram negras.
O espaço e o planejamento urbano são outros elementos fundamentais para entender as desigualdades e desenvolver um sistema de transporte mais integrado e justo. O estudo da Casa Fluminense mostrou que a tarifa de transporte pesa muito mais para os moradores das periferias, por estarem mais longe do trabalho e ganharem menos. “Em alguns casos, as pessoas comprometem mais de um terço da sua renda com transporte, só considerando o ônibus municipal, sem contar deslocamentos intermunicipais muito frequentes nas regiões metropolitanas, especialmente nas periferias”, explicou Guilherme.
O alto custo da passagem, a péssima qualidade do transporte e muitas vezes a falta dele fazem com que os pobres usem mais a bicicleta e os próprios pés para se deslocarem, não por um questão de sustentabilidade, mas de falta de opção.
“Uma das grandes dificuldades é pensar a mobilidade urbana a partir da experiência do pobre. Parece que o mobilidade urbana é uma ciência que nasceu para resolver o problema de quem não tem problema de mobilidade. Não adianta pensar em mobilidade urbana para o cara que mora no Flamengo e trabalha na Glória [bairros da zona sul do Rio], e tem uma bicicleta de 5 mil reais”, pontuou Vítor Del Rey, presidente do Guetto – Gestão Urbana de Empreendedorismo, Trabalho e Tecnologia Organizada.
Como algumas das soluções para diminuir as desigualdades socioespaciais, participantes do evento concordam que é necessário pensar em moradias mais próximas do centro e na distribuição dos empregos pelas cidades, de forma a reduzir o deslocamento entre casa e trabalho; rever a questão do subsídio do transporte público e investir mais na integração entre os meios de transporte.