Em meio à pandemia do novo coronavírus, moradores da favela do Terreirão, no Recreio dos Bandeirantes, zona oeste do Rio de Janeiro, se reuniram, no último dia 12, em evento com música ao vivo, quiosques, bares e até recreação infantil. Pelo menos 600 pessoas estiveram presentes no local, entre adultos e crianças. A maioria sem máscara, ignorando a lei nº 8859/20 que tornou obrigatório o uso do equipamento de proteção em locais públicos. A movimentação se repete todo final de semana, coincidindo com o funcionamento da feirinha do Terreirão, onde comerciantes vendem roupas, acessórios e itens de decoração.
No entorno da feira, funcionam bares e quiosques, formando um extenso pólo gastronômico que ocupa boa parte da Avenida Guiomar de Novaes, principal via da favela. A movimentação no local costuma durar até de madrugada, com pessoas consumindo alimentos e bebidas alcóolicas, apesar da nova alteração no decreto 47.250, divulgada pelo governo do Estado do Rio, no último dia 11, que autoriza o funcionamento de bares e restaurantes com apenas 50% da capacidade de público do local, sem shows ao vivo e com consumo de álcool somente até às 22h.
Eurilene Paiva, 22 anos, é atendente em um quiosque de comida nordestina e não se espanta com a aglomeração no lugar. “Eu atendo muita gente toda noite, mas eu uso máscara o tempo todo. Me sinto segura mesmo que o cliente não use, não me importo muito com isso”, afirma. Para a atendente, a vida precisa continuar e as pessoas têm que garantir seu sustento durante a pandemia.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Covid-19), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no último dia 11, o isolamento social foi abandonado por 2,8 milhões de pessoas entre a segunda e a terceira semana de agosto. Patrícia Canto Ribeiro, pneumologista da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz) e da Sociedade de Pneumologia e Tisiologia do estado do Rio de Janeiro (Sopterj), observa que, principalmente nas favelas, as pessoas precisaram continuar trabalhando, mesmo em setores não essenciais. “Pela necessidade, as pessoas tiveram até que se aglomerar em filas para receber o auxílio emergencial. Nosso isolamento foi ruim desde o princípio, isso se refletiu nos altos números de contaminação e no descaso atual com o distanciamento. Era preciso ter caprichado mais lá nos primeiros casos”, comenta.
Até agora, 1.824 pessoas foram contaminadas pelo novo coronavírus no Recreio dos Bandeirantes, e 111 morreram, segundo dados do Painel Rio Covid-19, do Data.Rio. Esses números não impressionam a moradora Marcela Oliveira, 33 anos, que cuida de crianças em sua casa. “Mesmo com quarentena, as pessoas adoeceram. Não adiantou de nada esse negócio de isolamento. Eu mesma nunca me isolei, recebendo dez crianças todos os dias na minha casa. Elas vêm de van, têm contato com parentes. Tem como fazer distanciamento assim?”, indaga.
Marcela levou a filha de 8 anos para brincar no espaço de recreação com pula-pula e cama elástica que é montado aos finais de semana no Terreirão. Nenhuma das duas usava máscara. “Me incomoda, só uso em locais que proíbem entrar sem”, explica. A mãe dela, Vânia de Oliveira, 52, que trabalha como diarista, não compartilha da opinião da filha. “Eu me preocupo. Segui à risca cinco meses de isolamento, saí hoje por insistência, escolhendo não respeitar o distanciamento”, lamenta.
Patrícia Ribeiro pontua a importância do uso de máscara para frear o contágio do novo coronavírus. “Estudos apontam que o uso da máscara diminui a carga viral infectante, então, mesmo se você for contaminado com o vírus, irá manifestar uma versão mais branda. Mas não vamos esquecer que o ideal é continuar o isolamento, não é porque flexibilizou que existe a necessidade de se aglomerar em bares, fazer festas e comparecer em eventos”, destaca a pneumologista.
Os irmãos Felipe Pereira, 27 anos, tatuador, e Guilherme Assis, 21, entregador e estudante de Direito, acreditam que ter que voltar a trabalhar estimulou boa parte das pessoas a se permitir ter momentos de lazer sem se preocupar com a pandemia. “Quarentena é pra rico. Pobre tem que sair, trabalhar e pegar transporte público lotado”, diz Guilherme. Sem máscaras, eles aguardavam atendimento em um dos quiosques de lanches do Terreirão. “A gente veio rapidinho comprar para levar para casa, não iremos consumir aqui e também procuramos ficar mais afastados da multidão”, explica Felipe.
A prefeitura do Rio de Janeiro vem flexibilizando as medidas de isolamento social desde o dia 2 de junho, permitindo setores da economia serem reabertos de acordo com a curva de contaminação do novo coronavírus. Depois de três meses fechada por decreto municipal, a feira do Terreirão voltou a funcionar no dia 12 de junho, às sextas e aos sábados, de 14h às 23h. Para Francisco Franco Silva, presidente da Associação de Moradores da favela, os comerciantes não podem ser responsabilizados pela aglomeração, tão pouco pela não utilização de máscaras por parte dos consumidores. “Os clientes precisam se orientar. Informação e notícias sobre o vírus é o que mais se tem visto por aí, e a Associação procura conscientizar ao máximo os moradores. Mas as pessoas estão escolhendo não respeitar o distanciamento”, lamenta Francisco.
Esta matéria foi produzida com apoio do Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo do Google News Initiative.
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