João nasceu no estado do Rio de Janeiro em 1995, e adotou o nome artístico Mulambö. Seu trabalho ganhou destaque em 2019, participando de exposições em centros culturais como o MAR (Museu de Arte do Rio) e o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica.
Em junho de 2022, o artista participou da exposição “Hu: minha alegria atravessou o mar”, localizada no MAC (Museu de Arte Contemporânea de Niterói) com curadoria da artista Ana Beatriz Almeida, a qual faz parte da 0101, plataforma de arte dirigida e pensada por artistas negros.
Seu processo criativo é voltado a potência que constrói o existir periférico. É possível identificar a presença de certos movimentos como o fauvismo e o dadaísmo, com a aparição de cores vibrantes e contrastantes em suas pinturas, e obras compostas de materiais cotidianos, como o papelão, o tijolo e a fotografia. Grande parte de sua produção simboliza uma busca e valorização da ancestralidade, assim como o protesto contra o racismo, a elitização da cultura e a violência policial.
“Antes de ser artista, eu sou neto, filho e padrinho. Faço arte para afirmar que não tem museu no mundo como a casa da nossa avó” – Mulambö.
Segue abaixo a entrevista realizada com o artista.
Você foi criado em qual lugar do Rio de Janeiro?
Cresci entre a cidade de Saquarema e São Gonçalo, sempre oscilei entre os dois. Ao mesmo tempo que são muito parecidos, conseguem ser muito diferentes de várias maneiras. São Gonçalo é uma cidade da região metropolitana, um lugar com muita gente, muita coisa, muvuca, doideira. Saquarema já é uma cidade que funciona em outro tempo, em outra velocidade.
Pensar sobre as proximidades e as distâncias entre o subúrbio e o interior do Rio de Janeiro sempre me atravessou. Como existem vários “rios de janeiro”, como existem diversas formas de ocupar um mesmo lugar.
Sempre tive muita dificuldade de me perceber como alguém vindo de um lugar. Quando me perguntavam de onde eu era, ficava meio nessa “Caraca de onde eu sou?”. Foi no momento que passei a entender que meu lugar é do entre, do movimento, que meu trabalho artístico começou a se desenvolver.
Onde você mora hoje em dia?
Voltei a morar em Saquarema com a minha família, que sempre morou todo mundo junto. Montei meu ateliê aqui. Foi fundamental criar esse espaço de trabalho dentro da minha própria casa, porque, pra mim, tudo se mistura, não tem como separar o processo criativo do pessoal.
Voltei de corpo e alma pra Saquarema, até no intuito de trazer a minha experiência e tentar movimentar artisticamente a cidade. Eu percebia a escassez de centro cultural tanto em Saquarema quanto em São Gonçalo. Eu sei das dificuldades que tive quando era moleque pela falta de referência, então poder abrir uma portinha pra alguém, alguma possibilidade, já ajuda bastante.
Tem alguma técnica específica de materialização que você prefira trabalhar (costura, pintura, colagem, fotografia, etc)? Que você sente maior afinidade?
Eu comecei desenhando, então hoje, acabo tendo uma afinidade forte com a pintura, mas não necessariamente é o que eu mais gosto de fazer. O meu trabalho é para além do objeto em si. Cada obra é uma história que exige uma forma diferente de ser contada, podendo ser uma escultura, uma roupa, um vídeo, um áudio. A escolha sempre vai depender da narrativa em si. Eu gosto de me desafiar em pensar novas possibilidades, buscando explorar linguagens e materiais diferentes. A minha proximidade e meu maior apreço é por contar histórias.
Teve algum artista que serviu como uma base de inspiração para sua produção?
Pra mim, teve muita galera que serviu como referência. Primeiro, foram pessoas que eu trabalhei junto. Trabalhei com uma artista chamada Carla Santana, lá de São Gonçalo. A gente estudou junto, e comecei a ajudar ela nas exposições e projetos. A primeira exposição que participei foi por causa dela, então ela é muito importante. Inclusive, ela abriu uma exposição em maio na Carpintaria (Jardim Botânico).
A Carla foi fundamental pra me apresentar essa possibilidade de mostrar o que eu gosto de fazer, e principalmente, mostrar lugares onde o meu trabalho faria sentido. A partir dela, eu fui conhecendo mais uma galera, incluindo outras pessoas do Coletivo Trovoa, que ela participa. Fui reunindo amigos queridos, artistas que me influenciaram a perceber que eu não tava sozinho. Ter essas referências e proximidades é muito importante. Apesar de podermos usar linguagens muito diferentes, eu faço parte de um grupo, de uma mesma cena, querendo passar uma mesma ideia.
A partir daí, começo a conhecer artistas mais antigos. Uns eu até acabei conhecendo trabalhando posteriormente, como Jaime Lauriano, Aline Mota, Rosana Paulino. Não só a produção desses artistas passa a ser uma referência, mas como a própria vivência e história. É importante pensar nos detalhes, nas trajetórias, e se pensar artista para além das obras.
A sua família sempre apoiou sua carreira artística?
Sempre apoiou, assim, nunca incomodou ninguém. Comecei fazendo história em quadrinho, mas até eu perceber que queria assumir esse foco na produção, eu já tinha participado de exposição, então já tinha uma consistência melhor pra chegar com essa ideia.
Nunca houve resistência, mas também nunca foi tipo “vamo fazer essa parada”, porque não era algo que a gente tinha contato. Quando era moleque, eu não queria ser artista como sou hoje, porque eu não sabia o que era isso de fato, nem minha família. A gente tá descobrindo junto com o meu trabalho sobre o que isso significa. A gente sempre se apoiou e se fortaleceu.
Então a sua certeza sobre sua carreira no meio das artes só chegou depois de já ter participado de exposição?
Pois é, veio depois. Foi muito doido, porque eu comecei fazendo história em quadrinho na internet, e meu trabalho foi sendo divulgado pelo Instagram e chegando em vários lugares. Conheci a Carla, e acabei caindo nesse universo da arte contemporânea, de exposições, e tal.
A primeira exposição coletiva que participei foi em 2018 no Galpão Bela Maré. No meio de 2019, eu fui convidado pra fazer uma individual no MAR (Museu de Arte do Rio). Então foi um intervalo muito curto entre publicar os trabalhos no Instagram e realizar exposições em espaços institucionais importantes. Como foi tudo muito rápido, foi até difícil pra digerir o porquê dos meus trabalhos estarem nesses lugares. As coisas foram acontecendo, uma exposição atrás da outra, tacaram a bola pra mim, e eu resolvi fazer o gol.
Em 2020, fui consolidando a ideia de que é isso que sou e quero ser. A profissionalização desse trabalho é para além da forma que você trabalha e ganha, se trata também da sua forma de agir e pensar. Carregando sempre a família, os amigos, minha namorada, artistas e a galera que me acompanha, reconhecendo que esse trabalho nunca é só meu de fato.
Ninguém te ensina a ser artista, e pra eles, pra todo o sistema e estrutura que nos cerca, quanto mais afastarem a gente, melhor.
Qual foi o momento mais desafiador da sua carreira?
Tiveram alguns. Teve um período em 2019 de três exposições que foi muita doideira, porque era eu e minha namorada tendo que fazer tudo num tempo curto, sem auxílio de nada. Foram três exposições independentes em três ou quatro meses com mais de cem trabalhos. Nesse período, aprendi a fazer curadoria, a pensar na minha narrativa, a montar uma exposição, a falar sobre meu trabalho.
Fora isso, teve o momento da pandemia que foi desafiador pra todo mundo, e também pra subjetividade do meu trabalho, porque minha produção sempre foi sobre a rua. Ter que ficar dentro de casa e perder esse acesso, esse dia a dia do ônibus, da saída do trabalho, acabei me perguntando como meu trabalho sobreviveria poeticamente sem o contato com esse universo.
Como falar da rua não estando na rua?
Tem algum trabalho seu que você consideraria mais “significativo”? Que mexa mais com você emocionalmente?
Tem dois trabalhos que mais representam o que eu faço. A minha Bandeira Mulamba e a Vassoura que é um pincel. São trabalhos antigos que foram feitos bem antes das exposições. Principalmente, a Vassoura. Tentava botar em todas as exposições que eu participava. Quando a criei, eu nem sabia o que era aquilo, mas fiquei muito feliz. Se alguém me perguntava o que eu fazia, eu mostrava foto desses dois trabalhos. No universo de galeria e arte contemporânea, nunca ganharam muito destaque, mas sempre foram meus favoritos.
Quando você começou a usar o nome Mulambö? E por quê?
Foi algo tão natural que nem tenho esse momento exato na cabeça. Assumir esse título foi junto a esse período da minha entrada nesse meio da arte que eu to hoje. Desde sempre, escutei “esmulambado” dentro de casa. Passava o dia inteiro brincando na rua, jogando bola, então eu era uma criança que tava sempre suja. Aí minha mãe falava: “esse moleque sempre todo esmulambado”. Quando cresci, continuei sujo, porque recolhia material na rua pra trabalhar. Não tinha dinheiro pra comprar tela nem nada. Hoje em dia, vivo sujo por mexer com tinta e essas coisas. O nome foi também uma forma de guardar essa infância. Essa sujeira continua viva dentro do meu trabalho.
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