“Precisamos refletir sobre identidades culturais e processos de exclusão social, econômica e cultural para poder discutir estratégias de descolonização do nosso imaginário… Um imaginário histórico de exclusão, marginalização e exploração criado por hegemonia.”
Maria Hernandez (Venezuela – Brasil)
É muito importante pensar a história do Brasil quando tratamos de qualquer fenômeno de desigualdade. Os homens europeus vieram para cá com a intenção de colonizar e explorar o país. As mulheres indígenas foram as primeiras vítimas dos estupros. Quando a mulher afrodescendente é trazida para ser comercializada no mercado de escravos, os estupros eram consentidos pela legislação, que tratava esta mulher como produto. A abolição da escravatura é recente, data de 1888. São menos de 200 anos de liberdade, ou seja, todos com sangue negro nas veias tiveram escravizada sua quarta ou quinta geração ancestral.
As mulheres brancas que acompanhavam os colonizadores sofreram a forte influência da religião cristã na formação das suas famílias. As imposições da igreja tratavam da mulher que veio da costela de Adão, da Eva, que ofereceu o fruto proibido a Adão, da mulher de Ló que virou estátua de sal apenas por ostentar sua curiosidade. A Bíblia foi traduzida e interpretada por homens que sempre colocaram a mulher como coadjuvante das tramas. O protestantismo marca a dominação patriarcal com a renegação da divindade da mãe de Jesus, Maria, mulher mais simbólica do livro, colocando-a como mero instrumento reprodutor. Com as perseguições religiosas na Europa, muitos protestantes migraram para o nosso país. É uma sociedade construída sob a égide da religião cristã. Neste modelo de sociedade, as mulheres não têm livre arbítrio e o homem é reconhecido como mantenedor e possuidor do direito de decisão. Neste sistema eurocêntrico, capitalista, machista e opressor, as mulheres, independente da etnia, sempre foram estigmatizadas como companheiras, mães, donas de casa e submissas ao detentor do falo.
São muitas as disparidades de direitos, entre elas, as garantias do princípio da igualdade salarial. As mulheres precisam estar em cargos de poder. O problema é que, no meio dos homens, a mulher se vê igual aos que lhe cercam e esquece das outras mulheres que são excluídas destes mesmos espaços. O Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos era uma ferramenta potente do Governo Federal para pensar e implementar politicas para suprimir as disparidades de gênero nas esferas sociais da vida. Com a extinção desse ministério em 2016 e os demais fatos ocorridos este ano, é importante que as mulheres compreendam que este golpe politico não tirou uma mulher da presidência. O golpe é contra as mulheres, sendo muito simbólico o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
A ideia do patriarcado branco, elitista e misógino é afastar as mulheres dos cargos importantes e de tomada de decisões para condicionar nossos direitos aos interesses do governo ilegítimo. A união das mulheres é imprescindível, seja na luta pela autonomia dos corpos, como no caso da gravidez, seja pela igualdade salarial ou mesmo na criação de políticas de inclusão em condições dignas da mulher no mercado de trabalho.
Primeiramente, além de gritar “Fora Temer”, o movimento feminista deve estar unido no pleito destas garantias. Temos que desenvolver mecanismos para além do sistema político vigente. As micropolíticas são a revolução silenciosa – educadoras e educadores pautando a questão de gênero como instrumento de transformação do pensamento crítico dos alunos sobre o lugar da mulher na sociedade. As mulheres que estão no legislativo e executivo devem publicizar as propostas de inclusão e reivindicação de direitos com outras mulheres, de maneira que, mais que representadas, as mulheres se sintam ocupando estes cargos juntas. As mulheres do Judiciário devem coletar dados sobre as questões de gêneros nas unidades prisionais, nos modelos de sentenças e atuar juridicamente em favor das companheiras que precisar utilizar o sistema judiciário do país. É uma questão de empatia. Não adianta lutar pelos direitos das mulheres e não garantir os direitos das mulheres que dividem a mesma casa ou que trabalham para você.
A questão de gênero abre pauta para uma série de discussões, como o lugar da mulher trans, adoção e licença-maternidade. É preciso o comprometimento de setores da sociedade para garantir o lugar digno de trabalho para todos os trabalhadores, mas, seguindo o principio da isonomia, as mulheres merecem uma atenção especial pelo lugar de subjugação secular e da marginalização / comercialização de seus corpos.
Violência contra a mulher e machismo em todo o país
Segundo estudo recém-divulgado do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, homens recebem salários 30% maiores que as mulheres no Brasil. De acordo com o último Censo do IBGE, as mulheres representam 51% da população do Brasil, mas o direito das mulheres ao voto é muito recente, 1932. Um registro deste atraso reflete nos números de candidatas eleitas no país: em 2012 foram 537 eleitas, em 2014, 663. Em 2016, este número caiu para 639 eleitas. O Brasil ocupa a 116ª posição no ranking mundial de participação feminina no Legislativo. Apenas 9,9% do total de deputados federais no Congresso Nacional são mulheres, e, no Senado, há apenas 15% de senadoras. Na Arábia Saudita, 20% dos assentos parlamentares são ocupados por mulheres. O Judiciário não é muito diferente. Dos 11 cargos de ministro do Supremo Tribunal Federal, apenas dois deles são ocupados por mulheres – assim como dos 35 cargos de Ministros do Superior Tribunal de Justiça, apenas seis deles são ocupados por mulheres.
Os dados sobre violência contra a mulher são assustadores no país. Em 2015, o Estado do Rio registrou 360 mulheres vítimas de homicídio doloso (com intenção de matar) – 16,7% destes casos eram resultados de violência doméstica ou familiar. Em 2015, um levantamento do Instituto de Segurança Pública (ISP) afirma que que a cada duas horas uma mulher é estuprada, o que resulta em uma média de 4.600 crimes sexuais por ano. Um dos casos mais chocantes de 2016 foi o estupro coletivo, por mais de 30 agressores, de uma adolescente de 16 anos no Morro do Barão, Zona Oeste do Rio. O caso causou comoção nacional, levando as mulheres do Brasil para as ruas exigir que o slogan “Nenhum direito a menos” se torne realidade.
Do sul ao norte, o machismo impera e as mulheres precisam estar unidas contra este sistema. Em setembro, o governador de Pernambuco Paulo Câmara (PSB) mais uma vez se pronunciou sobre os dados da Secretaria de Defesa Social do Estado, com mais mil casos de mulheres que denunciaram estupros em Pernambuco. A Polícia Militar de Pernambuco divulgou uma série de orientações de segurança, que incluíam evitar uso de bebida alcoólica em exagero, exposição em redes sociais e procurar andar em companhia de pessoa que ofereça segurança, e o material foi endossado por Câmara.
O fato é que as ações do Estado têm sido ineficientes para erradicar a violência contra a mulher, principalmente quando o governador apresenta discurso semelhante ao do estuprador e orienta as mulheres a lidar com os fracassos do seu governo – afinal, se há ruas e avenidas mal iluminadas, com pouca circulação de pessoas e problemas de infraestrutura, estes são problemas da má gestão da administração pública. As edificações e terrenos abandonados, onde parte dos casos de violência ocorre, também são de competência da administração pública que, na pessoa do governador, deveria garantir a função social destes imóveis. Essas recomendações são machistas e misóginas, tornam as vítimas as verdadeiras culpadas pela violência sexual, reafirmando a cultura do estupro e a naturalização desta epidemia social. É mais um discurso frio e insensível que oprime a mulher agredida ao lembrar as características físicas do criminoso – depois de viver um episódio traumático, a última coisa que a mulher quer lembrar é da fisionomia de seu agressor. A polícia que deveria nos proteger é a mesma que nos oprime todos os dias com assédios sexuais, morais e físicos. Ser mulher é ter medo até da polícia.
Essas orientações ferem diretamente o direito da mulher sobre seu corpo e suas vontades. Estigmatiza na mulher a culpa pela violência: a causa estava na roupa, o comportamento ou o local onde ela estava. A culpa nunca é da vítima, os homens que são responsáveis por esta cultura do estupro, homens iguais aos que discursam como o governador de Pernambuco.
As mulheres do Brasil estão unidas!
Nenhum direito a menos! Uma por todas e todas por uma!