Vocês perdoem, mas o dia de hoje é uma data muito significativa pra mim e a coluna de hoje vai ser autobiográfica. Para atenuar, eu diria que é um tema multibiográfico, porque envolve a biografia de um monte de gente. O tema também é teatro carioca, suas agruras e delícias.
No dia 14 de dezembro de 2007, há exatos dez anos, na sala Vianinha da ECO – Escola de Comunicação da UFRJ, no campus Praia Vermelha, estávamos estreando o espetáculo Mundo Grampeado – Uma ópera tecno-tosca. Ali era o ponto inicial de uma jornada que, não imaginávamos, se estenderia por dez anos, diversos teatros e espaços e que, em janeiro de 2018, vai estar novamente ao alcance do público.
Nosso espetáculo fechou a VII Mostra de Teatro da UFRJ que, naquele ano, apresentou 11 peças – um viva ao curso de Direção Teatral da ECO: celeiro de muitos artistas que renovam a cena desta cidade regularmente!
Era um musical marginal, uma ópera popular que se passava no entorno de um churrasquinho de rua, indo das estradas de Tel Aviv à Lapa, passando por Brasília, Bombaim e Washington. Tomo agora, enquanto escrevo, um gole de Xiboquinha, para lembrar da cachacinha adocicada que distribuímos ao público desde a nossa primeira apresentação! Até queijo coalho e cerveja já compartilhamos com a plateia.
Foi uma dramaturgia parida aos poucos: retalhos de diálogos que dormiam em gavetas, fragmentos de conversas que eu captava nas ruas e buzus, personagens da minha marcante juventude tijucana – tudo isso misturado a uma trama rocambolesca que organicamente foi se construindo. Depois, veio um lindo processo coletivo de composição das 12 canções originais da peça.
A história era a seguinte: Doidjo, cria do Estácio, dono de uma rádio comunitária pirata, reencontra o amigo de infância Dinho, que trabalhava com alta tecnologia de segurança em Israel. Dinho roubou do Serviço Secreto Israelense um aparelho chamado Habacuc, capaz de grampear telefones celulares em qualquer lugar do mundo. Eles começam a transmitir grampos aleatoriamente até que impactam a vida política nacional e global.
No Brasil, por exemplo, surge um movimento neofascista, liderado por uma vítima atormentada da cura-gay, chamado NPB – Novo Povo Brasileiro… É isso mesmo que você não está pensando, mas pode pensar agora: Mundo Grampeado, em 2007, previu o surgimento do MBL!
O senador Eutorico de Alheios, outro personagem, afirmava: “No Brasil sempre vence o bem… remunerado”. Nas cenas do JR – Jornal Racional, já ridicularizávamos as telelideranças dos paneleiros. Não conto mais porque quero que vocês assistam.
Nesta noite de quarta-feira, há dez anos, coroávamos um processo coletivo tão intenso e rico, tão pulsante e versátil, que fez esta peça universitária ecoar pela cidade, reverberar através dos anos, impactando a vida de toda uma geração de jovens artistas. Lembro que, em nossa primeira filipeta, imprimimos o nome de cada uma das 30 pessoas da equipe. E, ao longo destes anos todos, acredito que quase uma centena de pessoas já estiveram diretamente envolvidas com Mundo Grampeado, embora nosso elenco tenha um núcleo duro quase permanente.
Aquele campus mágico, com suas imponentes árvores centenárias, imensas sombras, o prédio do antigo Hospício, onde Lima Barreto, o gênio atormentado e sofrido, ficou internado, é um cenário perfeito para um caldeirão universitário de arte inovadora.
Aos 30 anos, formado em Comunicação Social pela mesma ECO-UFRJ, insatisfeito e angustiado com os rumos do trabalho, fiz um novo vestibular e comecei a cursar Direção Teatral na mesma Praia Vermelha. Lá, montei um primeiro espetáculo com dois atores chamado O Casal que Dario Fo deu. Na montagem seguinte, fizemos uma adaptação de contos do escritor argentino Roberto Arlt (uma espécie de Nelson Rodrigues portenho) e montamos Las Terribles Noches de Roberto, que reuniu o núcleo inicial do elenco e músicos que, no ano seguinte, agregariam novos nomes para a montagem de nossa ópera tecno-tosca. Fizemos três apresentações, nos dias 14, 15 e 16 de dezembro.
O curso de Direção Teatral da UFRJ é a demonstração cabal de que um pequeno núcleo pedagógico pode impactar a sociedade em muitos níveis. E revela também a universidade como espaço de criação que fundamenta a autonomia expressiva do artista e aposta unicamente em sua singularidade e realização, formando um importante eixo de produção artística na cidade.
Dedico então a coluna de hoje a estes artistas maravilhosos que este espetáculo trouxe para a minha vida. Aos que estavam lá nesta memorável noite que hoje completa uma década, como Vicente Coelho, Julia Gorman, Sergio Somene, Olívia Zisman, João Lucas Romero, Marcelo Valentim, Marília Prata, Xicão Sampaio, Carla Ferraz, César Miranda, Surian dos Santos, Débora Paganni, Nanda Bernardes, Daniel Uryon, Luizinho Alves, Arthur Ferreira, Lucas Oradovschi.
O mesmo vale para outros que agregaram a nós logo em seguida e fazem parte também desta longa trajetória, como Pedro Bené Benevides, Julia Shimura, Paula Valente, Nathália Lebeis, Julio Diniz, Claudia Martins, Antonio Escobar, Rafael Souza Ribeiro, Russo Lima, Afonso Henrique Soares, Veríssimo Junior, Kika Farias, Luciana Monnerat, Vitor Emanuel, Alessandro Boschini, Sandro Lima, Fabiola Romano, Seu Magno, Cecília Carvalhal, Tassila Valle, Dulce Penna, Luiza Neves Mayall e muitos e muitos outros. O espaço não me permite listar todos, mas é só para deixar registrado que teatro gostoso é aquele que envolve muvucada e frisson coletivo.
São dez anos de um teatro feito na raça, sem patrocínio, sem jamais ter sido contemplado em qualquer edital, feito unicamente da vontade e da força expressiva de cada um dos artistas envolvidos. Vale lembrar que nosso grupo tem nome: Cia Monte de Gente. E não é a toa.
Folheio emocionado a revistinha da VII Mostra e lá me deparo com o texto de apresentação da peça:
“Chegou a hora de mapear os arquétipos de nossa mutante sociedade. Esse é o momento de apontar e nomear, reclassificar para confundir, expor, revelar e tentar entender o que diabos se passa ao nosso redor. O mundo atravessa o filtro de cada mente, recebe dela uma série de insanidades particulares, assume ares de tragédia, drama ou paródia, e sai cercado de falas superficiais e insuficientes considerações existenciais. Então, conterrâneos e contemporâneos, lá um vai um mural histriônico de personagens intensos, verborrágicos e atônitos, representantes do Espaço e do Tempo que nos coube.”
Depois de tudo isso, aguardem: a primeira novela radiofônica de realismo telefônico vai voltar! Viva o teatro independente e sua potência e resistência!