Não lembro de ter nascido para te agradar

Gezellig

  1. Ter companhia com um ambiente agradável e amigável
  2. (de uma atmosfera) Aconchegante
  3. Ter uma sensação otimista sobre o ambiente

Você já sentiu a necessidade de não falar o que pensa para não destruir uma atmosfera agradável? Então você fica sentada, ouvindo alguém dizer algo que te incomoda, tentando fingir que não está incomodada pra não incomodar ninguém? Isso é especialmente comum entre as mulheres, porque os homens cis têm sido mais influentes historicamente, o que aumenta o risco de um impasse. A reação da mulher ao que é incomodo é muitas vezes considerada o incomodo em si, e não o que a incomodou inicialmente. Como resultado, aprendemos a calar a boca. Somos condicionadas a colocar o conforto de outras pessoas à frente do nosso.

As mulheres nunca devem fazer um homem se sentir estúpido. Pode nos custar os nossos empregos, a nossa reputação, a nossa segurança, e até mesmo as nossas vidas. Mansplaining, por outro lado, é tão prolífico quanto o HPV, exceto que em vez de resultar em câncer, resulta neles serem promovidos. Nós às vezes até suportamos sexo doloroso ou simplesmente nulo apenas para evitar que a relação sexual seja desconfortável para ele. Se fazemos isso em nossos momentos mais íntimos com pessoas que confiamos o suficiente para trazer para nossas camas, imagine como isso acontece nas interações com todos os outros caras que encontramos diariamente, em quem nem confiamos perto da nossa mesa.

Você certamente pode continuar a fazer isso, se é isso que você quer. Mas estou aqui para dizer que é um ato revolucionário falar o que você pensa, e que você nem sempre precisa agradar pessoas que não te agradam. Polidez não é nosso escudo, nossa unidade é. Unidade não apenas entre mulheres, mas entre todos e todas nós que nos dedicamos a destruir o Patriarcado Capitalista e Branco.

Não há como destruir o Patriarcado sendo gezellig. Na Holanda essa palavra é usada constantemente, e aprendi que ela não se aplica a mim. Manter um ambiente agradável pro outro está longe de ser uma prioridade, mas é agressivamente esperado. Se alguém está desconfortável, por que isso não está sendo resolvido? Como é que a “gezelligheid” é mais importante do que o bem-estar de alguém? Pode-se imaginar que, se uma pessoa não está bem, isso significa que o ambiente não é tão agradável quanto parece, mas, na prática, o ambiente tem vida própria, independente dos indivíduos envolvidos.

Você não cria o ambiente, o ambiente é criado para você, por algum tipo de figura paterna que sabe o que é melhor para você. Poderíamos facilmente chamar isso de hegemonia cultural ou de aparato ideológico estatal. Seu principal objetivo sendo: nos doutrinar para fazer o trabalho de manutenção do status quo, e beneficiar apenas uma elite, que certamente não inclui quem deve sufocar seus sentimentos.

Se queremos que o mundo mude, e que uma revolução enterre esse sistema podre, precisamos ser capazes de revolucionar nossas interações interpessoais. Caso contrário, é a revolução que estamos sufocando até a morte, permitindo que comportamentos reacionários prosperem. Se não esperamos respeito de nosso ficante, nosso vizinho, nossos amigos, como esperamos obtê-lo de um governo ou de nossa sociedade como um todo?

A ideia de que precisamos aprender a tolerar comportamentos tóxicos de homens para não sermos desagradáveis é o mesmo princípio que nos leva a tolerar o comportamento fascista do Estado. O medo das repercussões nos silencia e, assim, permanece.

Quase todas as organizações supostamente horizontais em que participei tinham um cara que acabou revelando um papel de liderança subliminar. É claro que, para manter o ambiente agradável no grupo, é esperado que você aceite isso. E há uma série de desculpas: ele está na organização há mais tempo, ele era um fundador, ele sabe muito e assim por diante. Basicamente, ele é o mais influente. Sem o líder, a organização entra em colapso. Sem a “chata”, eles ficam com meses de material pra fofoca. E assim reproduzimos a ideia de que as mulheres são descartáveis, substituíveis e contribuem apenas silenciosamente, garantindo uma diversidade superficial.

“Você não pode ensinar truque novo pra cachorro velho”, alguém me disse uma vez, tentando me convencer a me adaptar ao comportamento tóxico de outra pessoa. Eu preciso ter paciência e entender que as pessoas são assim, é assim que é. O problema é que geralmente os homens que dizem às mulheres o que elas precisam fazer, como elas precisam se adaptar, como elas estão fazendo algo errado por não tolerar os erros de outras pessoas. Meu lema é não colocar minha cabeça para baixo. Eles são os que precisam se adaptar a mim, entender que é assim que eu sou. Isso é o que eu chamo de “aprender a lidar com isso”. Porque aceitar a maneira como as coisas são para proteger o bem-estar de uma hegemonia é muito reacionário, e é triste ouvir isso pessoas que se dizem militantes.

Não há dúvida de que a misoginia vem de dentro de casa, mas isso não é uma desculpa para jogar o feminismo pela janela afora. Em outras palavras, mulheres reproduzindo comportamentos sexistas não significa que o Patriarcado não exista. Se estamos preocupados com o bem-estar umas das outras, a melhor maneira de garantir isso para suas parceiras é apoia-las, não silenciá-las. Podemos construir comunidades onde ouvimos umas as outras, onde tudo bem cometer erros e pedir desculpas. Devemos distinguir entre poder hegemônico e empoderamento, e estritamente alimentar o último. Só então poderemos começar a planejar as coisas importantes e parar de reproduzir a violência.

Texto: Mirna Wabi-Sabi

Arte: Talitha Andrade

Título: Inspirado pela Gloria Groove (O Proceder)