Uma piada fora de hora. Um gracejo fora de lugar. O salário, claramente menor. O medo de andar na rua à noite. A fraqueza que só existe na cabeça dos outros. Todas essas situações colocam as mulheres em posições de vulnerabilidade diante do mero exercício do ser-mulher (sem qualquer pretensão biologizante, neste caso). As diferenças e fragilidades entre os gêneros pesam, sim, apenas para um lado. Dois episódios recentes envolvendo a maior rede de televisão do país são cabais para compreender isto. A denúncia de assédio de uma figurinista sobre um protagonista de novelas e o caso de agressão entre um casal que terminou na expulsão de um dos participantes de um reality show explicitam por que ainda precisamos falar de feminismo todos os dias – mesmo que muita gente siga em negação a respeito deste assunto. Os casos nos fazem refletir sobre uma questão primordial: a culpa, venha ela de fora para dentro ou também enquanto autocrítica.
Em ambos os casos amplamente divulgados na mídia, este sentimento comum prevalecia nas vítimas. A trabalhadora, acuada pela figura hierárquica do galã consagrado, sentia vergonha dos assédios e chegou a acreditar ser, de certa forma, causadora deles. A moça agredida, que sequer era capaz de entender que fazia parte de um relacionamento abusivo, se sentiu culpada pela eliminação do “namorado”. Ambas sofreram. Ambas choraram. Ambas foram acusadas de oportunismo, do famoso “mimimi” e de terem responsabilidade sobre os episódios. Fossem outros tempos, onde estariam as demais partes? Seguindo com suas vidas e criando novos problemas, sem qualquer peso na consciência, já que por eras a sociedade assim os legitimou. Mas ainda que os tempos estejam mudando, a culpa parece ser sempre um castigo imposto apenas às vítimas do gênero feminino, que são vistas desde a lenda bíblica de Adão e Eva como a desgraça não apenas dos homens, mas da humanidade inteira.
Talvez, Freud explique – ou não. As mulheres carregam nos ombros todas as dores do mundo, inclusive na militância. Sempre nos pedem que sejamos fortes, que nos desconstruemos, que não apontemos o dedo, entretanto, não hesitamos em agir com excessiva autocrítica sobre nós mesmas. A sororidade é uma ideia incrível, mas nem sempre sabemos, de fato, lidar com ela quando se trata de ser solidária consigo e compreender (não justificar) os próprios erros. Seguimos pensando no que podemos fazer por nós mesmas, ignorando que a culpa por certas atitudes, muitas vezes, não é nossa, mas de um sistema opressor que verticalmente nos dita regras. Tentamos resolver nossas questões e de nossas irmãs de maneira horizontal, esquecendo que muito do que fazemos não é fruto de nossas vontades deliberadas.
Não, nem tudo deve ser de responsabilidade das mulheres, especialmente daquelas que agora tentam se situar como seres humanos melhores. Sim, há ainda muito moralismo, preconceito e julgamento também por parte de quem devia acolher. Por mais consciência que tenhamos, paixões e razões ademais ainda nos movem. Muitas escolhas e atitudes que nos são alheias também nos atravessam, ainda que não sejam de arbítrio nosso. Precisamos sentir, ainda que sob o manto da autocrítica, a mesma piedade por nós mesmas que temos para com as nossas irmãs. Reconhecer desvios é fundamental, mas não podemos nos culpabilizar e arrastar correntes que não são de nossa propriedade.
Nessa história, todas sofremos. E a condenação não pode cair apenas sobre o colo de quem deliberadamente ocupa este papel. Reconhecer-se como vítima, com todas as questões que isso pode acarretar, é um passo importante para se colocar no lugar da próxima e repensar o próprio papel na sociedade. Entretanto, é fundamental também para não se permitir arcar com o peso de incumbências que não nos cabem.
Que não sejamos cruéis conosco. A sociedade já é o suficiente e a todo o tempo. Por isso entenda: moça, a culpa não é sua. Nenhuma delas.