Negro é raça, preto é cor. Sou negra, preta de corpo e alma. Mas, alma não tem cor. Mas se cor tivesse, a minha sereia preta, seria negra, sim, senhor.
Entro numa loja da Zona Sul todos me olham de cima a baixo, de baixo a cima, até que uma vendedora, desconfiada, se aproxima e faz aquela pergunta básica, ainda me olhando por cima: “você quer alguma coisa”? Pergunta ela com aquela cara de cínica.
“Quero aquele vestido, aquela bolsa e aquele par de sapatos”. E ainda, fixamente me olhando, ela retruca; “hum, boa escolha, são muito bonitos. Mas, temos esses aqui, são mais baratos”.
Ainda dentro da loja, enquanto eu aguardo meus pacotes, o segurança que me seguia, para num canto e, sem disfarçar, é só para mim que ele olha. E me olha tanto, mas tanto, que nem vê que no estabelecimento mais duas clientes estão entrando.
Duas mulheres muito elegantes, vestidas com roupas de uma outra grife. Também me olham e em minha direção elas vêm, e fazem aquela pegunta preconceituosa, que devido a cor da minha pele, insistem em me definir. Uma das madames sem exitar, na maior cara de pau, pergunta assim: “quero saber onde fica toalete. Ei, você trabalha aqui?”
Com um sorriso sarcástico nos lábios eu respondo: “não, estou aguardando minhas compras”. Assim como a outra, ela se espanta com a resposta, me pede desculpas e, totalmente sem graça, ela sorri. É! Que triste sina. E mais uma vez eu fui confundida com a “moça da faxina”.
São tantas as confusões, nos veem com tantas limitações, que só quem é negra, quem é negro, quem é preto, quem é preta é que sabe. E são também inúmeras as injustiças, e ficar calado já não dá mais, não lhes cabe. E agora, com o avanço da tecnologia, tudo é noticiado, e nas redes sociais nós sempre vemos um preto ou uma preta sendo humilhados.
Nos becos e vielas dentro favela. Ih, caraca! Lá vem os canas, mandou parar e, como sempre vão revistar a gente! Estão cheios de raiva, e aperta daqui, e aperta dali: “abre a boca, estica as mãos. Ei, você de mochila, vira tudo no chão”.
Revistam e tudo reviram, mas só acham nos pertences dos homens documentos e telefones. Mas, como o habitual, aquela pergunta cheia de preconceito do policial: “de quem são estes aparelhos, e cadê a nota fiscal”? “Não tá aqui, tá em casa”.
E os PM’s, ainda cheios de raiva e muito preconceito, continuam a revista e assim falam pra eles: “já que são seus, vocês sabem as senhas, desbloqueiem os aparelhos, queremos ver o que tem aí, vamos averiguar, dependendo do que a gente encontrar, veremos se iremos pra DP, ou vamos liberar”.
Entram em todas as redes, Facebook, Messenger, Twitter e Whatsapp, vasculham tudo e perguntam sobre alguns contatos, se fosse na pista, isso seria invasão de privacidade. Mas, é na favela. Então, a falta de respeito dos canas passa batido, tá liberado.
Procuraram, procuraram e nada foi encontrado, e aí mandaram os caras ralar. Mas, antes é dado aquele conselho bem escrachado e debochado; “nota fiscal de telefone é pra carregar na carteira e não deixar em casa, guardada na gaveta ou dentro do armário”.
É foda, é foda, mesmo. E isso é porque dizem que não existe racismo no Brasil. Tem uma galera que fala que somos mestiços e que somos todos iguais. Ah, tá. Tá bom. Dá vontade de mandar essa gente ir pra casa do… ir para… ponte que partiu!
Os negros, sim, para as pessoas brancas são todos iguais, é só olhar para maioria que mora nas periferias e nas favelas e aqueles que estão dentro das cadeias. A cor da pele da maioria é preta
Olhe para dentro das casas de famílias classe média, para ver a cor da mulher que está lá lavando a louça, esfregando o chão e esfriando a barriga no tanque, depois de tê-la esquentado no fogão.
Dá só uma olhada no homem que está em pé, parado na porta da loja do shopping, com um olhar atento. E, como dizem que aqui no nosso país não existe racismo, é bem comum falar: “de tão grande, o cara parece até um armário, pois é um tremendo negão”.
E mesmo sabendo que está ali para protegê-los, o tiozão e a tiazinha, olham pra ele com medo e desconfiados. Sabem que o homem é um segurança, mas, sem o uniforme do trabalho, nunca o confundirão com um médico, um engenheiro, até mesmo com um juiz ou advogado. Para eles se é preto, será sempre confundido com um ladrão, com um bandido ou um ex-presidiário.
Sim, para os elitistas brancos, somos todos iguais. Mas, ao contrário do que acontece com eles, os negros e as negras são iguais a tudo aquilo que não presta. Somos tão iguais, que no mercado de trabalho as vagas reservadas são sempre as subalternas. Faxineira, porteiro, balconista, empregada doméstica.
Ah, mas como pode, em pleno ano de 2019, ainda estamos tendo que lutar contra o racismo? Será tão difícil as pessoas brancas entenderem que os negros não querem expulsa-los de nenhum espaço, mas sim, apenas também ocupá-los? Pois isto é o que está garantido na Constituição: saúde, moradia, trabalho digno e educação.
Enquanto escrevo este texto, às vésperas do dia da Consciência Negra, faço uma reflexão. Volto alguns anos atrás, porque eu, Carla Regina, não me excluo desta maldição. Pois, já fui doméstica, camelô, até vendi água no sinal, operadora de caixa de supermercado e o escambau, e quando resolvi sair destes esteriótipos sabia que a partir daquela decisão, para ter garantidos meus direitos e ter o mínimo de dignidade e respeito, minha vida seria um tremendo e eterno quebra pau.
E é absurdo para mim ter que dizer que, mesmo sendo uma jornalista, quando preciso preencher fichas ou formulários, ainda tem quem me pergunte se sei ler e escrever. E nas lojas de shopping, por eu ser negra, quando veem minha pele preta, como eu disse lá no início, não consigo me livrar da sina de ser ainda confundida com a moça da faxina.