Flora e Arthur chegaram ao terreno em Pipa em 1943; lá, tiveram 10 filhos e viram nascer dezenas de netos. FOTO: acervo da família.
Herdeiros de Arthur e Flora, que tiveram 10 filhos, foram removidos da área deixada pelo casal. FOTO: Acervo familiar

Os agricultores e pescadores Arthur Marinho e Flora Barbosa Marinho chegaram em 1943 ao município de Tibau do Sul, a 85 quilômetros de Natal, no terreno que viria a ser conhecido como caminho do Galhardo.

Ambos tinham 26 anos. Flora estava prestes a ter seu primeiro filho com Arthur, que seria batizado Antônio Artur Marinho, o seu Antônio, de quem falaremos em breve.

Vivendo daquelas terras, Flora e Arthur tiveram 10 filhos. Criaram a prole e viveram do cultivo do solo, da pesca e da criação de cavalos por 67 anos. Flora faleceu em 2000, aos 83 anos. Um ano depois, Arthur também faleceu, com 84 anos. Deixaram 8 de seus 10 filhos vivos, além de dezenas de netos.

Atualmente localizada na rua Albacora, a propriedade de Flora e Arthur viu suas divisas se modificarem ao longo das últimas décadas, incluindo novas propriedades para os irmãos de Arthur e seus filhos. Em 2019, quando o Estado os removeu dali, eram 12 lotes divididos entre os herdeiros. Ao todo, somavam apenas 5,7 hectares.

Um hectare corresponde a uma área de 10 mil metros quadrados – o local herdado tinha, portanto, 57 mil metros quadrados. Nos 12 lotes, se plantava caju, coco, macaxeira, verduras e aquilo que o solo e clima permitissem.

4 gerações e uma história

O primogênito do casal Flora e Arthur, seu Antônio, completou 80 anos no último dia 26 de setembro. Este foi o quarto aniversário que ele passou fora das terras onde nasceu.

Seu Antônio começou a trabalhar no sítio da família aos 7 anos, ao lado dos pais. Ele conta que da parte paterna, pai e avô foram indígenas na região, onde hoje ficam os estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba. Seu avô se chamava José Luiz Barbosa. A avó, Emiliana Barbosa, era filha de um indígena e de uma portuguesa.

O sítio nem nome tinha, conta seu Antônio, recordando que raramente recebiam visitas ou precisavam indicar para alguém a localização das terras. Plantavam, pescavam e também criavam cavalos, que serviam aos trabalhos na roça e às visitas à vila para vender os excedentes da colheita e da pesca. “Cada cacho de coco que era uma beleza”, lembra seu Antônio.

Avô de seu Antônio, o descendente de indígenas José Luiz faz parte do folclore da região, tendo suas histórias contadas em livros e versos.

Certo dia, no ano de 2019, duas viaturas com policiais armados “com umas pistolas e espingardas, ou rifles, uns troços grandes, chegaram como fosse pra bandidos”. Seu Antônio perguntou se era para tirarem ele da terra, mas disseram que não, que apenas queriam evitar invasões. “Os invasores eram a gente mesmo”, ele lamenta, ao relembrar a história. Ele e seus 5 filhos não puderam mais trabalhar no local herdado.

Sobrinho de seu Antônio, Gilmark Barbosa Marinho nos contou que o Parque da Pipa havia sido criado em 2006, mas por muitos anos nada foi feito a respeito. Ninguém os procurou nos 13 anos entre a criação do parque e a desapropriação. “Do nada, decidiram que tinham que tirar a gente de lá. Todo esse tempo e não perguntaram pra onde onde a gente ia, sem poder trabalhar ali”, explicou.

Gilmark seguiu os passos dos ancestrais e também vive da terra. Além dessa ocupação, ele é instrutor de surf nas praias de Pipa.

Aqueles que não cabem no paraíso

A cultura local preserva os traços das influências indígenas, portuguesas e africanas, com sua música, dança e artesanato.

Apesar do acelerado incremento econômico que a região viveu nas últimas décadas, parece haver um cuidado efetivo na preservação de sua atmosfera rústica e original.

A maior parte dos proprietários que oferecem seus serviços aos turistas de Pipa são migrantes e imigrantes, aposentados ou jovens casais de diversas regiões do Brasil e mesmo da Europa.

A elevação dos preços imobiliários da região urbana afastou muitos de seus antigos moradores. Mas, às margens do circuito turístico, sobrevivem ainda comunidades rurais que datam do século 19.

Uma dessas comunidades é formada pelos descendentes de Arthur Marinho, que nasceu em Tibau do Sul, em 1917.

As falésias de Pipa são mundialmente famosas, responsáveis pelo repovoamento nas últimas décadas. FOTO: Divulgação

A praia de Pipa, localizada no município de Tibau do Sul, no Rio Grande do Norte, é um dos destinos turísticos mais badalados do Brasil. Sobretudo jovens das classes médias e altas abarrotam os hostels, albergues e pousadas da comunidade nas temporadas de veraneio.

Suas belas praias, falésias, piscinas naturais e a vida marinha abundante se somam ao charme local e ao clima liberal que impregna a rua Baía dos Golfinhos e suas adjacências, onde diversos bares e restaurantes oferecem uma ampla amostra da culinária internacional.

O boom de Pipa começou nos anos 1980, quando a praia foi descoberta por trupes surfistas, atraídas pelas ondas perfeitas para a prática do esporte. Em menos de uma década, Pipa se tornou um dos pontos turísticos mais visitados do Rio Grande do Norte, sendo hoje – provavelmente – sua praia mais conhecida; a mais cara, certamente já é.

Pipa concentra um grupos de praias paradisíacas, dentre as quais se destacam as praias do Centro, do Amor, do Madeiro e as mundialmente famosas falésias. Por essas águas, se pode fazer a romântica observação do pôr-do-sol ou mergulhar ao lado de golfinhos.

Um processo kafkiano

Os herdeiros de Arthur e Flora foram removidos das terras de sua família em 2019. A partir de então, se deu início a um processo judicial tortuoso por reparação.

Sem respostas das autoridades, os agricultores procuraram o advogado Ivan Lenzi Júnior para recorrer à Justiça. Ivan deu entrada no processo por desapropriação indireta ainda em 2019.

“Após muita insistência, conseguimos que designassem um perito para avaliar os valores devidos da indenização. Mas foi aí que toda essa situação ficou ainda mais absurda”, relata Ivan.

Área onde moravam herdeiros de Artur e Flora é mostrada no centro da imagem. REPRODUÇÂO: processo judicial

A palavra kafkiano apareceu na conversa e se mostrou precisa para o que ocorreu a seguir. Uma série de entraves de toda natureza adiaram por meses a primeira visita do perito à propriedade.

A responsabilidade pela avaliação técnica é do NUPEJ (Núcleo de Perícias Judiciais). Após a realização da primeira visita, Ivan apresentou reclamação à Corregedoria de Justiça do Estado, alegando a idade avançada dos herdeiros e a urgência em se juntar o laudo pericial ao processo.

Ocorre que, por motivos inexplicados, o profissional que realizou a perícia foi deslocado para outras funções e nova avaliação se fez necessária, no entendimento da Justiça.

Há 4 anos, os descendentes de Arthur e Flora aguardam a nova designação. “As famílias ficam assim, prejudicadas. São anos sem uma ação do Estado. Aí se cria uma esperança, vai lá um perito, mas acontece toda essa coisa kafkiana. Imagina o sentimento deles, a angústia e o desamparo“, lamenta Ivan.

Processo kafkiano segue sem respostas

Para a produção desta reportagem, tentamos contato com o NUPEJ através de seus canais oficiais disponíveis pela internet, mas não conseguimos obter respostas.

Estacas de cimento colocadas pelo governo estadual dividem Parque Estadual da Mata de Pipa e área desocupada em Tibau do Sul, a 85 quilômetros de Natal. FOTO: Gilmark Marinho

O advogado da família Barbosa Marinho também segue tentando fazer o processo voltar a andar, mas igualmente não tem retorno sobre os motivos da constante inércia. Após quatro anos de petições e tentativas de realizar a perícia, a última movimentação do processo no sistema do NUPEJ foi de 17 de fevereiro deste ano. Lá consta “Status Atual: Aguardando Sorteio“. Desde então, a situação segue inalterada.

O laudo pericial é necessário para que o processo de desapropriação indireta prossiga e a família Barbosa Marinho seja indenizada, ao menos amenizando os danos sofridos por uma política pública importante, mas que feita sem a necessária atenção à população pode acabar cometendo graves injustiças.

Esta reportagem foi produzida com apoio do

Edital Google News Initiative.

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