Gosto de contar meu processo de escrita. O título do texto seria: ” A fé na vida é esta luz do sol que entra pela janela do meu quarto.”
Tem muita gente que acha que só pode começar a escrever quando tem certeza de como o texto vai ficar. Isso não funciona. Escrever é bem parecido com viajar. Você planeja e na maioria das vezes sai tudo de outro jeito. Mas claro que pra muitas situações, seja de viagem ou planejar coisas importantes da vida, ter um roteiro ajuda muito. Mesmo que algumas coisas mudem depois.
Eu queria falar sobre o tema da casa. Acordei com a cabeça cheia de ideias, sentimentos, problemas. Tudo ao mesmo tempo. No meio disso, recebi a notícia de que um casal de amigos perdeu a filhinha de um ano. No meio disso tudo, celebrei uma parceria nova de trabalho. E desci para pedir para a vizinha, por favor, por gentileza, diminuir o volume do rádio.
Sonhar com casa significa, de maneira geral, reencontros ou novos rumos na sua vida. Li isso na internet. Estou num momento desses. Mas hoje acordei gripada, com vontade de ficar quietinha na cama. E não deu. A vida veio me chamar para botar meu bloco na rua. Mas o texto chegou, de mansinho. E eis que o tema virou esse: falar de como eu acho que casa e pessoas são parecidas.
Tem um cara que eu gosto muito de ler, chamado Gaston Bachelard. Ele fala coisas muito lindas sobre o que significa uma casa. E como uma casa pode significar nossa relação com a infância. Outro dia eu falo mais dele aqui, combinado? Mas vou colocar uma citação de outro cara, o Mia Couto, um escritor incrível:
“E começo pela casa onde nasci, onde eu vivi minha infância. E é muito curioso que nós chamamos a nossa casa, (…) como se nós seguíssemos vivendo nela toda a vida. E confirmamos (…) da maneira como nós nos referimos a nossa casa de infância aquilo que eu, alguma vez, teria escrito (…): o importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora. Esta casa converteu-se em memória porque ela foi carregada de encantamento. E mais do que tijolo e madeira, os materiais que produziram esta casa foram histórias. Eu sou filho de imigrantes e (…) como todos os imigrantes eles contavam histórias. (…) E de tanto contarem essas histórias eles acabaram de fazer dessa narrativa, dessa ficção uma espécie de uma outra residência. Um regresso de sua própria terra natal.
(Mia Couto, 10 de setembro de 2014).
Eu moro no Rio desde o ano passado. Vim de Porto Alegre. Mas já morei em São Paulo, Aracaju, Salvador e Brasília. Aos 17 anos saí de casa, meio fugida da autoridade da minha mãe e fui morar numa residência estudantil. Fazíamos assembleias que duravam horas, sabe para quê: para resolver o problema da louça. E das comidas, que cada um comprava e botava etiqueta, ia dormir pensando que tomaria café da manhã no outro dia e não encontrava nem o leite nem o pão nem a bolacha. Depois, morei com uma amiga, na época que fazíamos teatro, num quarto em Pinheiros, um bairro de São Paulo que era lugar de artistas e pessoas meio loucas, mas do bem. E decorávamos o quarto com placas de rua, caixotes de feira e coisas legais que encontrávamos no lixo. No tempo que o lixo de Pinheiros era um lixo, era um luxo. Morei com uma turma que colocava o feijão pra cozinhar, ia pro quintal conversar e o feijão queimava. Quase sempre. Morei com marido e filhos. Morei sozinha. Morei com amigas.
Morar para mim é construir uma história. Com a casa, com as pessoas, com os lugares. Um dia, aqui no Rio mesmo, eu aluguei um apartamento em Copacabana. Eu explico. Ia fazer uma formação em Coaching. Por quase sete dias, 12 horas de treinamento por dia. Pra ficar indo e vindo de onde moro, ia ser cansativo. Na primeira noite que cheguei (o curso começaria no outro dia de manhã) eu me senti a própria princesa contemporânea: livre, leve e solta. Num quarto só pra mim. A dona do apartamento deixou as chaves com o porteiro do prédio. E na geladeira, um mimo: frutas e água. Ajeitei tudo, tinha levado até umas bonecas (eu sei que com 55 anos não deveria mais ter bonecas, mas tenho…). E depois de um bom banho, saí pra jantar. Sozinha, bebi uma taça de vinho. Voltei pelas ruas feliz da vida. Deitei, apaguei as luzes e imaginei que teria o sonho da Branca de Neve, mas meu príncipe despertador já certinho pra tocar as 7:30. Como os contos de fada não são reais, lá pelas 3:30 comecei a ouvir muito barulho e achei que era um pesadelo. Não era. Era a feira. De quinta-feira em Copacabana. E onde? Bem embaixo da minha janela. Se eu quisesse uma banana era só pedir e os caras me mandariam pela janela.
Esbravejei, fiquei muito brava, decepcionada, já ia reclamar para a proprietária que não me avisou etc etc etc.
Aí, decidi olhar a feira. Ouvir a feira. E foi uma das coisas mais lindas que vivi. Logo que deu, desci. Conversei com os feirantes, ganhei morangos, ganhei pastel. Meu café da manhã foi assim: comidinhas de graça e muitas histórias. Fui pro curso. Me sentindo nas nuvens e morrendo de sono.
Então, posso dizer que também morei em Copacabana.
Gosto muito de receber visitar. Se você viesse me visitar hoje, agora mesmo, neste instante, teria café, carinho, livros e conversa pra você. Meu apartamento é pequeno, não está decorado como gostaríamos, mas é aconchegante. Quando entrei nele pela primeira vez adorei algo que muita gente pode não ter gostado: todas as portas estavam pintadas de lilás. Parecia que escolheram fazer isso para me atrair. E conseguiram.
Vim visitar o apartamento com vários amigos antes de decidir alugar. E em todas as vezes que vim ele estava como hoje: iluminado, a luz da manhã entrando generosa, sons de pessoas falando, sons de passarinhos e alguns latidos de cachorros. Gosto de animas, de luz, de sol e de pessoas. E claro, das portas pintadas de lilás.
Vou usar esta história para falar da vida. Vai ser mesmo uma metáfora, tá? Hoje, não gosto mais de morar aqui. E por vários motivos tenho sonhado em me mudar mesmo que a palavra mudança, neste momento, me dê alergias pelo corpo todo.
Acontece que o apartamento me iludiu. E como acontece em muitas relações, com o tempo, ele me mostrou seus defeitos. Todos os apartamentos, assim como todas as pessoas têm defeitos. E está bem. É isso mesmo. O que complica é que certos defeitos a gente aceita, outros não.
Vou dar um exemplo, falando de pessoas-apartamento. Você entra numa amizade, aluga por uns três anos, mas das duas uma: ou você quer ficar mais tempo ou se puder quer logo comprar, levar pra sua vida inteira. E durante a jornada, o apartamento mostra que a instalação elétrica é velha e precisa ser trocada. Ah. Isto é um problema até comum. Faz-se um laudo, um orçamento e pronto. Problema resolvido, para segurança e paz de todos.
Daí, tempos depois, a pessoa-apartamento apresenta um entupimento nos canos. Poxa… dá trabalho. Mas a solução existe. E tudo retoma a normalidade. Problema comum e você consegue fazer parte da comunidade das pessoas comuns que têm até um certo trauma com determinados tipos de “eletricistas” e “encanadores”.
Vez ou outra, o apartamento-pessoa exige uma manutenção. Mas você conhece os vizinhos, adora aquela padaria da esquina, tem porteiros muito legais, curte as feiras de segunda e de quinta. Numa delas, a banca de carnes (me perdoem amigos veganos, ainda estou carnívora) prepara tudo para você: corta, fatia, tira as peles. Na farmácia, o responsável te dá dicas da melhor pastilha pra garganta e não é que na usa rua tem o melhor Café? Onde você pode escrever, usar a internet e tem muitas tomadas para você carregar celular e computador ao mesmo tempo.
Ah, sem falar nos botecos. E na roda de samba que fica ali na esquina. Por ter escolhido essa pessoa-apartamento coisas muito bonitas chegaram até você. Tantas que te fazem ver os problemas como menores. Você tolera o péssimo asfalto, alguns vizinhos mau humorados, o super-mercado sempre cheio.
Só que, com o tempo, a pessoa-apartamento começa a ter cães latindo o dia todo. Latidos dolorosos, latidos quase infernais. Também a pessoa-apartamento faz ruídos, não respeita seu sono, apresenta vazamento de gás, mostra uma rachadura na parede.
Coisas que você prefere não ver. Coisas que você não desejava, antes de ir morar nessa história.
Pessoas, assim como as casas onde moramos, são escolhas que fazemos. E nunca vai ser possível conhecer os problemas que vão apresentar. Mas não é por isso que vamos desistir. Continuamos lá. E muitas vezes, morando lá porque decidimos que os defeitos são muito menores do que as coisas boas.
Porque enquanto existir laços, enquanto existir sentido de amor e acolhimento na casa onde moramos, nas pessoas que escolhemos ter do nosso lado, vamos consertando aqui, reclamando dali. Mas seguimos juntos.
Se a feira te acorda de madrugada, dá pra descer e comer morangos. Ou pastel. E ganhar histórias. E fazer amigos.
Porque pessoas e apartamentos falham, mas sempre sabem como fazer chegar luz do sol na nossa vida.