Como é de conhecimento comum, a situação dos militantes de direitos humanos no Estado do Rio de Janeiro é de extrema vulnerabilidade. Isto se dá, pois, toda denúncia feita de alguma violação de direitos, principalmente aquela provocada por agentes da segurança pública, vem acarretando algum tipo de represália e ameaças. Um dos exemplos recentes disso é a situação enfrentada pela militante da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, Márcia Honorato.
Márcia é uma reconhecida militante no Estado do Rio de Janeiro, especialmente por sua atuação no sentido da denúncia de inúmeras violações cometidas por policiais militares contra moradores de favelas e periferias cariocas e fluminenses. Ela participou ativamente das mobilizações que se originaram a partir da Chacina da Baixada, em 2005, quando policiais militares assassinaram 29 pessoas entre Nova Iguaçu e Queimados. Além disso, ajudou a denunciar grupos de extermínio nesta mesma região, além de atuar em outros casos de violação do direito à vida cometida por agentes públicos no Estado do Rio de Janeiro. A partir de então, entretanto, sua vida passaria por uma modificação profunda. A militante de direitos humanos em questão sofreria um atentado, em 2007, e diversas ameaças após isso. Uma das mais graves ocorreu em abril do referido ano. Márcia estava em casa, quando observou que o portão de entrada estava aberto, o que achou muito estranho, pois este costuma ficar sempre fechado. Assim, foi até o portão para fechá-lo, e, neste momento, uma pessoa que se encontrava, juntamente com outra, em uma moto parada na rua, chamou pelo seu nome. Em seguida, desceu da moto e foi até Márcia, pegando-a pelo pescoço, e falou: “você é um anjo; eu já te avisei; você quer morrer?”. Enquanto dizia isso, esfregava uma arma de fogo sobre o rosto de Márcia e esta respondeu, então: “vai se ferrar!”. O homem, então, atirou para o alto e, neste exato momento, o outro indivíduo que estava na moto aproximou-se, segurou o pescoço daquele que atirou, dizendo: “você está maluco?! quer complicar ainda mais a nossa vida?!”.
Márcia foi obrigada, então, a abandonar sua casa às pressas, deixando para trás sua moradia e seu comércio, de onde obtinha a renda que a sustentava e aos seus filhos. Em junho de 2008, ela foi inserida no Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Governo Federal. Infelizmente, não somente ela ficou vulnerável, mas toda a sua família. Seus filhos, ex-marido e sogra também tiveram que sair de onde moravam. Todos eles perambularam por diversos locais e hoje correm o risco de morar na rua. Recentemente, numa tentativa frustrada por quem deveria lhe dar uma satisfação, foi impedida de relatar sua situação à ministra Maria do Rosário, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos.
Entretanto, apesar de supostamente estar sob a proteção do Estado, esta não se efetivou em momento algum. Como afirmou o professor Daniel Aarão Reis em artigo publicado no jornal O Globo (20/09/2011), Márcia vive hoje numa espécie de “clandestinidade oficial”. Apesar da extrema vulnerabilidade, Márcia continuou a atuar como militante de direitos humanos. Ela acredita que um mundo sem injustiças e violência é possível. Participou de inúmeras atividades que a Rede contra a Violência realizou no ano e também contribuiu para a denúncia de vários casos de violência policial em favelas do Rio de Janeiro, sejam elas ocupadas ou não através das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Recentemente, entre outras ações, estava acompanhando e ajudando a denunciar casos de violência estatal ocorridos em duas comunidades ocupadas pela polícia: Pavão-Pavãozinho e Coroa. Na primeira, desde a morte de um jovem por policiais em abril deste ano, foram denunciadas vários outras violações cometidas por estes agentes, com o conseqüente afastamento de um policial daquela UPP. Na segunda, ela acompanhou a situação de jovens que foram seqüestrados por PMs.
Mais uma vez a sua atuação e a dos militantes da Rede não seriam bem vistas. Desde o final de agosto, militantes do referido movimento social vêm sofrendo uma série de ameaças provenientes de policiais. Ameaças por telefone e tentativas de intimidação pessoal ocorreram. Contudo, a situação mais grave ocorreu com a Márcia, em 12 de setembro, no Centro do Rio de Janeiro: ela sofreria duas tentativas de assassinato. A primeira ocorreu na altura do Passeio Público, por volta das 14:30hs. Quando tentou atravessar uma rua próxima, um carro (Siena) foi em sua direção e ela desviou. Considerou que, pelo trânsito da cidade ser caótico, aquela situação expressava a imprudência de algum motorista.
A segunda tentativa ocorreu por volta das 21hs, quando alguns integrantes da Rede estavam indo embora. Ela e outros companheiros pararam para fazer um lanche, na Cinelândia. Neste instante, percebeu que um carro com as mesmas características daquele que quase a atropelou estava parado próximo e seus integrantes conversavam com policiais militares que estavam na rua. Ela não deu importância naquele momento. Algum tempo depois, já próximo à Central do Brasil, quando já havia se despedido dos demais, o momento mais grave: esse mesmo carro que havia tentado atropelá-la anteriormente faria uma nova tentativa. Neste momento, o sinal de trânsito estava fechado, mas uma ambulância passou pedindo passagem. O carro, então, aproveitou este instante para avançar sobre Márcia. Ela percebeu o que estava acontecendo, jogou-se na direção da ambulância e conseguiu correr até um bar, onde se escondeu num banheiro. O carro voltou, e um dos integrantes (havia cinco pessoas no veículo, todos encapuzados) abaixou o vidro, procurando-a. Pessoas que estavam no bar naquele momento ficaram atordoadas e comentaram: “Nossa, vai morrer todo mundo”. Quando ela saiu do banheiro um cliente lhe perguntou: “A senhora viu? Deve ser algum acerto de contas”. Ela respondeu, tentando não chamar a atenção para si: “Não vi nada, não”. Assim que percebeu que o carro não estava mais lá, ela saiu correndo, procurando um lugar seguro para ficar.
Por tudo isso, não admitimos esta situação. Exigimos que as autoridades públicas, municipais, estaduais, federais e da justiça tomem medidas imediatas para garantir a segurança de Márcia e sua família. É inadmissível que num Estado que se quer chamar de democrático permita que seus próprios agentes cometam tantos crimes e ameacem quem ousa denunciá-los publicamente. Márcia não pode se transformar em mais um número. Ela não pode se tornar mais uma cova no cemitério.
Nenhum militante a menos!!!
Movimentos sociais, instituições e indivíduos que assinam esta nota:
- Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência – RJ
- ANF – Agência de Notícias das Favelas
- Mães de Maio – SP
- Fábio Konder Comparato – Advogado e Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
- Pedro Paulo Lourival Carriello – Defensor Público (RJ
- Rubens Casara – Juiz de Direito
- André Fernandes – Jornalista
- Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia (CDH/CRP/RJ)
- Daniel Aarão Reis – Professor da UFF
- Luciana Vanzan – Conselheira do CRP/RJ
- Humanitas (Direitos Humanos e Cidadania) – RJ
- Ignácio Cano – professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
- Grupo Tortura Nunca Mais – SP
- Débora Maria – promotora popular e coordenadora das Mães de Maio
- Danilo Dara – Historiador
- Alípio Freire, jornalista, escritor e artista plástico – SP
- Instituto de Estudos da Religião (ISER) – RJ
- Laboratório de Análise da Violência – UERJ
- Rose Nogueira, jornalista e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais – SP
- Rede de Denúncia e Proteção aos Militantes ameaçados de morte – Basta de assassinatos! Nenhum militante a menos! – SP
- Lúcia Rodrigues – jornalista da Caros Amigos e da Rádio Brasil Atual
- Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto – BA
- Quilombo Xis- Ação Cultural Comunitária – BA
- Alipio Freire – Jornalista e escritor (SP)
- Núcleo de Preservação da Memória Política – SP
- Maria Helena Moreira Alves – Professora da Universidade do Chile
- Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade – MG
- Brigadas Populares – MG
- Cristina Pedroza de Faria, fotografa e professora
- João Brant – Intervozes (SP)
- Vera Vital Brasil – Fórum de Reparação e Memória do RJ
- Pastoral Carcerária – SP
- Conceição Oliveira – Blog Mariafro (SP)
- Rodolfo de Almeida Valente – Coordenação Jurídica da Pastoral Carcerária de São Paulo
- Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania – BH (MG)
- Uneafro-Brasil
- Aline Gama – UERJ
- Eliana Sousa Silva – Redes da Maré (RJ)
- Rede Extremo Sul – SP
- Adriana Vianna – Professora do Museu Nacional/UFRJ
- LACED – Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento – Museu Nacional/UFRJ
- Simone Maria – Socióloga
- Igor Ojeda – Jornalista
- Raquel Willadino – Observatório de Favelas
- Tatiana Merlino – Jornalista
- Reginaldo Bispo – Movimento Negro Unificado (MNU)
- Grupo de Educação Popular do Morro da Providência (GEP)
- Maria Geneci Silveira – RS
- Centro de Mídia Independente
- Coordenação do Movimento Negro Unificado de Santa Catarina
- Walter Mesquita – Viva Rio
- Danilo Moura – Instituto Quilombista (SP)
- Ângela Soligo – Unicamp
- Sarau da Ademar – SP
- Zilda Márcia Grícoli Iokoi – Professora titular e membro do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância da FFLCH da Universidade de São Paulo
- Consuelo Gonçalves – MNU e Rede Quilombos do Sul
- Luciane de Oliveira Rocha – Ong Criola
- Fórum Estadual de Juventude Negra – ES
- Ali Rocha, jornalista/produtora – SP
- Mercia Britto – Cinema Nosso (RJ)
- Luis Carlos Nascimento – Cinema Nosso (RJ)
- Carolina Merat – Produção do Filme Luto como Mãe
- Comitê Pró-Haiti
- Coletivo Merlino – SP