“Nu sta djuntu, nu sta forti”: Um Ano de Luta por uma “Vida Justa”, em Portugal

Créditos: Ana Mendes

Há um ano, as ruas da capital portuguesa testemunharam o surgimento de uma força coletiva sem precedentes, originária das periferias, dos bairros sociais e das zonas urbanas sensíveis, marcando o início do movimento “Vida Justa”: homens e mulheres negras gritavam de cima de palanques, em Crioulo e em Português, que “queriam uma vida justa e estavam juntos, estavam fortes”.

Este movimento, inédito em sua essência, nasceu da urgência sentida pelas comunidades mais marginalizadas de Portugal, muitas das quais são comunidades racializadas que historicamente têm sido excluídas do acesso pleno à cidade e aos seus recursos.

Naquele 25 de Fevereiro de 2023, uma multidão diversificada de 10 mil pessoas, mas unida por uma causa comum, ousou sair do lugar de silenciamento imposto às periferias para reivindicar “o centro de Lisboa”, ecoando um poderoso manifesto por justiça social e igualdade. A “Vida Justa” proclamou alto e claro que a cidade pertence a todos, desafiando as barreiras físicas e simbólicas que segregam seus habitantes. Aquela seria a primeira manifestação de mais outras que viriam. 

A começar pelo uso oficial do crioulo nos manifestos, o caráter emblemático do movimento “Vida Justa” é evidente. A forma de resistência cultural e linguística contra as hegemonias estabelecidas, desafiando a normatividade do português como língua dominante e, por extensão, as estruturas de poder que ela representa, reflete muito o objetivo do grupo. 

O crioulo, falado principalmente nas comunidades afrodescendentes e imigrantes, simboliza a voz das margens, dos oprimidos e dos excluídos do discurso dominante. Assim, a sua inclusão como língua oficial, junto ao português, não apenas valida e eleva essas vozes, mas reivindica um espaço de expressão e participação política para essas comunidades. É também um esforço consciente para descolonizar o espaço público e político, reconhecendo e valorizando o legado da diversidade linguística e cultural dessas comunidades como parte integral da luta por justiça social e igualdade.

Créditos: Ana Mendes

A parte à questão linguística, se a periferia é portuguesa, muitas das condições daqueles bairros assemelham-se às favelas e comunidades brasileiras. É possível identificar várias semelhanças entre as condições de vida nas periferias e bairros sociais em Portugal e as favelas e comunidades carentes no Brasil. Ambas refletem  situações de marginalização, segregação socioespacial, discriminação e desigualdades estruturais profundas que afetam as pessoas mais vulneráveis. Como lembra Flávio Almada (antropólogo conhecido como rapper LBC Soldjah) e José Pina (agitador sociocultural conhecido como Rapper Sinho), em matéria no Jornal português “Expresso”, de 07 março de 2023: 

“Os nossos bairros são os primeiros que despertam (na madrugada) e os últimos que dormem (na calada da noite). Isto é, dormimos quando as nossas portas não são arrebentadas pelas forças de segurança sob qualquer pretexto, por sermos conotados e inseridos, unilateralmente, nas chamadas Z.U.S (Zonas Urbanas Sensíveis). As pessoas dos nossos bairros são as últimas a serem empregadas e as primeiras a serem demitidas. Os nossos bairros são os primeiros a serem demolidos e as pessoas dos nossos bairros as últimas a serem realojadas.”

A realidade descrita por Flávio Almada e José Pina em Portugal encontra um paralelo direto nas favelas do Brasil, onde a marginalização socioeconômica e a estigmatização das comunidades são intensas. Assim como nos bairros lusitanos mencionados, as favelas brasileiras enfrentam a violência policial, a precariedade no acesso ao emprego, e a vulnerabilidade habitacional, refletindo uma luta compartilhada por dignidade e direitos fundamentais em meio a um cenário de desigualdades agravadas pelo capitalismo.

Para compreender a evolução das periferias em Portugal, é fundamental entender que as transformações demográficas nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, iniciadas na década de 1950, foram profundamente influenciadas por vários fluxos migratórios. A intensificação da migração interna, a chegada de trabalhadores de Cabo Verde para projetos significativos como a construção do Metro de Lisboa e a Ponte 25 de Abril, o retorno de colonos portugueses após a descolonização na década de 1970, e a imigração de cidadãos dos países africanos recém-independentes, resultaram em uma crescente demanda por moradia. A oferta de habitação, tanto no setor público quanto no privado, não conseguiu acompanhar essa demanda, levando ao desenvolvimento de “bairros informais” através de construções próprias. 

As práticas habitacionais da época, marcadas por discriminação racial e vulnerabilidade econômica, excluíram muitos imigrantes negros de acessar moradias adequadas, empurrando as classes mais marginalizadas para as periferias das cidades. Até o final da década de 1980, Portugal viu mais de 200 mil pessoas vivendo em assentamentos informais, delineando um contraste agudo e marcante na paisagem urbana, principalmente nas regiões de Lisboa e Porto, como também recordam Flávio Almada e Nuno Ramos de Almeida, em matéria para o portal 74, de 17 de Outubro de 2023.  

A luta do movimento “Vida Justa” é uma resposta direta às adversidades exacerbadas pela inflação desenfreada pós-pandemia, consequências do conflito russo-ucraniano na Europa e pela crescente e aguda crise habitacional portuguesa dos últimos anos, questões que afetam desproporcionalmente as pessoas dos bairros sociais/zonas ZUS. Estas comunidades enfrentam não apenas a escassez de habitação acessível, mas também o aumento dos preços dos alimentos, energia e outros bens essenciais, agravando a vulnerabilidade de famílias já em situação de precariedade.

O movimento é uma resistência viva contra a marginalização e a favor de melhores condições de vida. Suas reivindicações abrangem o controle de preços da energia e dos alimentos básicos, o congelamento dos juros dos financiamentos imobiliários, o fim das rendas abusivas e dos despejos forçados, além da demanda por salários mais justos e apoio aos pequenos negócios e trabalhadores em setores menos visíveis, como a limpeza.

Passado um ano, o “Vida Justa” continua a mobilizar, a inspirar e a agitar, mantendo viva a esperança de mudança. A persistência desse movimento reflete a determinação das comunidades periféricas em lutar por seus direitos, demonstrando a importância da união e da solidariedade na busca por uma vida digna para todos.

A jornada do “Vida Justa” é um lembrete poderoso de que as vozes das favelas e das periferias merecem e devem ser ouvidas no centro da discussão política e social. A luta por acesso à cidade, por moradia digna, e por uma existência justa não é apenas uma questão local, mas um desafio global, ressoando com movimentos sociais em diversas partes do mundo. Isso inclui lutas semelhantes no Brasil. 

A “Vida Justa” nos ensina que, mesmo nas circunstâncias mais adversas, a resistência coletiva pode pavimentar o caminho para transformações significativas. Enquanto o movimento marca seu primeiro aniversário, a mensagem é clara: a luta por justiça e igualdade continua, mais forte e determinada do que nunca. A cidade é de todos, e juntos, podemos torná-la um lugar onde a dignidade não é apenas um direito geralmente só citado em constituições, mas uma realidade vivida por todos os seus habitantes.

Nestes 50 anos da Revolução dos Cravos, é bom relembrar uma frase que diz que a revolução portuguesa começou na África. Hoje, uma nova revolução começou em crioulo, na periferia de Lisboa. Que este movimento inspire também o Brasil para que a “favela desça e tome também o asfalto”: a cidade, afinal, é para todos.

Instagram: @vidajusta.pt