Mudar o ministro da Saúde não resolve nada, ele é só mais um dos milhares de fardados em cargos no governo federal e nos governos estaduais aliados e amigos do presidente da república. Ele sai, entra outro general ou almirante. Eduardo Pazuelo pode no máximo ser visto como a caricatura que até tem sido poupada, porque Jair Bolsonaro é disparado o modelo ideal dos chargistas por seu histrionismo, assim ensinado no dicionário online: “Maneira de agir da pessoa histérica, definida pelo excesso de comportamentos exagerados, como os de um palhaço, na tentativa de se tornar o centro das atenções. Qualidade do que há comédia; comicidade.” Se servir a carapuça, aí está o rótulo perfeito.
Por mais honrosa que seja, a demissão do ministro da Saúde significará que o governo admite o fracasso que todo o mundo aponta no combate à pandemia. Nomeado embaixador no Vaticano, por hipótese, continuará uma nulidade, só que fazendo mal apenas a si próprio, seus familiares e ao chanceler Ernesto Araújo – aquele que saudou a possível indicação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington como “excelente nome” e recentemente se referiu à invasão do Congresso com a ressalva: “Há que reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”. É outro com a cabeça a prêmio, a depender das relações brasileiras com o governo de Joe Biden.
Outro é Ricardo Salles, destruidor do Meio Ambiente que empregou no Ibama em Mato Grosso o oficialato da Polícia Militar de São Paulo em cargos de relevância antes ocupados por técnicos e ambientalistas de reconhecida competência. A cabeça de Salles é pedida por organismos nacionais e internacionais desde o dia em que sentou a bunda na cadeira ministerial, mas Bolsonaro já advertiu várias vezes que nele ninguém mexe. É um mistério no ministério onde competência é medida pela régua presidencial.
O ministro da Educação, outro destaque no governo, certa feita disse: “Hoje, ser um professor é ter quase que uma declaração de que a pessoa não conseguiu fazer outra coisa”. Milton Ribeiro, além de titular da pasta que deveria ser ponto de partida de qualquer política de governo em país como o nosso, é também pastor presbiteriano como seu colega da Justiça, André Mendonça, outra nulidade que se adivinha na cara de nerd babão. Ele é conhecido por apelar à Lei de Segurança Nacional da ditadura e mobilizar a Polícia Federal contra jornalistas que desejam a morte do presidente ou associam sua imagem ao nazismo. Destaco que a igreja presbiteriana não compõe o círculo das neopentacostais da base parlamentar, embora seja reacionária como toda igreja e tenha entre seus fieis o casal Garotinho e Rosinha, que gracinha!
Não é mais novidade este tipo de comportamento: a Ordem dos Advogados do Brasil assistiu na semana passada passivamente à criação da Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil que tem por objetivo processar e pedir a condenação de quem falar mal do presidente Jair Bolsonaro. Chamou o homem de destrambelhado, ignorante ou truculento, suas virtudes estelares, vai em cana, por mais que o país inteiro concorde. Os doutores do direito seguem os passos do MEC ao classificar de “imoralidade administrativa” manifestação política dentro de universidades federais. É um Decreto Lei 477 da ditadura reeditado com verniz de “aggionarmento”, mas anacrônico demais para ser levado a sério. Pode pegar justamente por isso, “eles” odeiam contextualizações, sobretudo quando não entendem.
A orientação aos dirigentes das universidades é baseada numa recomendação de 2019 do Procurador-Chefe da República em Goiás, Ailton Benedito de Souza, que questionou judicialmente a Sociedade Brasileira de Infectologia por desaconselhar o uso de remédios como cloroquina na pandemia. Benedito diz que uma manifestação política contrária ou favorável ao governo representa ferir de morte “o princípio da impessoalidade”.
Segundo a citação do MEC ao texto do procurador caberia punição a comentário ou ato político ocorrido “no espaço físico onde funcionam os serviços públicos; bem assim, ao se utilizarem páginas eletrônicas oficiais, redes de comunicações e outros meios institucionais para promover atos dessa natureza”.
Este é o pensamento prevalente no país, ninguém se iluda. Professores estão contra a livre circulação de ideias no ambiente escolar, juízes admitem venda de sentenças, delegada federal inventa depoimento na Lava Jato, médicos defendem medicamentos sem comprovação científica, enfermeira finge aplicar vacina em idoso, apresentadores de rádio e televisão elogiam o governo e propõem até prisão de desafetos e coisas piores, artistas renegam passado de luta democrática em nome da sobrevivência, e por aí seguimos.
Este é o ambiente ideal para destruir a democracia com apoio de muitos segmentos da sociedade. No ataque ao estado de direito a competência administrativa funciona que é uma maravilha e a sustentação militar vale mais do que vacina contra a Covid. Como os militares exigem cargos, poder e dinheiro para apoiar Bolsonaro, tudo vai se arranjando com uma ajudazinha do judiciário e nenhuma oposição digna do nome, somente estas queixas nas redes sociais e um ou outro movimento de rua.
Os militares, é bom que se diga, ocuparam o poder em diversos períodos desde a proclamação da república em 1889, nunca com sucesso. Durante muito tempo houve uma ala nacionalista forte nas forças armadas, mas há muitas décadas foi substituída pelo pensamento da Escola das Américas, extinta e refundada dias depois com o nome de Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança. Forjado na Guerra Fria, o ideário da escola dirigida por militares norte-americanos é fortemente anticomunista e, consequentemente, antinacionalista porque tem cheiro de comunismo. É entreguista até a medula, servil e submissa como servo bom e fiel, capaz de fazer continência à bandeira dos Estados Unidos, dizer em alto e bom som “I love you” à passagem do presidente deles e tomar providências contrárias aos nossos interesses para obedecer às suas ordens.
Com este nível de subserviência da elite civil-militar e diante da vocação imperialista norte-americana, é praticamente impossível sairmos do atoleiro em que nos metemos. Se alguém espera um aceno que seja de Biden, saiba que ele acaba de dizer ao mexicano López Obrador que não vai vender vacina nenhuma ao seu país antes de imunizar todos os americanos, o que quer dizer mais mexicanos infectados e mortos na pandemia. Quem mandou ser negacionista amiguinho do Trump? Por aí, avalie o tratamento dispensado a nós, que lambemos os sapatos dele, demoramos demais para reconhecer a eleição do sucessor e mantemos até hoje posição dúbia sobre a invasão do Congresso em Washington no dia 6 de janeiro, como se lê nas palavras do chanceler Ernesto Araújo:
“Há que parar de chamar ‘fascistas’ a cidadãos de bem quando se manifestam contra elementos do sistema político ou integrantes das instituições. Deslegitimar o povo na rua e nas redes só serve para manter estruturas de poder não democráticas e seus circuitos de interesse”. Disse mais: “Há que reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral. Há que distinguir ‘processo eleitoral’ e ‘democracia’. Duvidar da idoneidade de um processo eleitoral não significa rejeitar a democracia”. A parcela da população brasileira ciente desses detalhes e filigranas das nossas relações externas já se deu conta de que Jair Bolsonaro é o bonde que compramos na eleição passada só para não deixar o PT cumprir o quinto mandato seguido no Palácio do Planalto, e mais: ninguém – principalmente os EUA – respeita quem não se faz respeitar.
Fizemos a opção consciente pelo atraso, pela tortura, pela selvageria e pela morte. Em nome do mercado, das privatizações e reformas que ele exige mais uma vez abrimos mão da nossa soberania e autodeterminação. Mas isso já falou aos brios militares, os que defenderam a Petrobras já morreram ou mudaram de lado, os que planejaram o submarino nuclear são marginais e seu chefe foi preso na Lava Jato. Os militares que tomaram o poder têm bem claro e definido o inimigo a ser combatido: somos nós, os brasileiros.