O esquizofrênico

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EDITOR: – É assim mesmo que você quer que seja publicado?  Umas cartas soltas de um esquizofrênico anônimo?

AUTOR: – Sim, exatamente dessa forma. Penso que assim, preservando a estética original do que foi escrito, as pessoas que o lerem, terão maior liberdade para imaginar e conectar um assunto ao outro; – leitores atentos costumam ir além de seus autores.

EDITOR: – Mas você sabe que há o risco de ninguém desejar ler o livro; – o mercado hoje tem mais apreço com aquilo que é fútil, ou aquilo que explora o emocional. – Por que você não aproveita essas cartas, constrói em cima delas uma nova história; – quem sabe um livro de autoajuda? – Essas coisas são vendáveis; tem público certo; – não algumas cartas soltas de um esquizofrênico que nem sei se é real.

AUTOR: – Eu sei que ele é real; e a ideia de preservar a estética desse jeito, seguindo uma sequência das cartas, me parece bem original; – ainda acredito que existam pessoas que valorizam esse tipo de leitura e abstração; – que se interessam por essa humanização do que está sendo exposto em forma de cartas; ali há um ser humano, doente, e que tem algo a dizer. Por que não fazê-lo ouvido respeitando seu anonimato?

EDITOR: – Veja bem, você se preocupa com questões que são bonitas e nobres; – porém, o que manda nesse mundo capitalista, é o retorno financeiro que algum livro pode proporcionar. Eu duvido que as pessoas tenham ou terão interesse em ler, da forma como está sendo organizado, em textos ou cartas, ou seja lá o nome que você queira dar a isso.

AUTOR: – Você não deveria subestimar as pessoas; – há muita gente preocupada e envolvida nessas questões humanas.

EDITOR: – Isso te faz um existencialista? Então é isso: você quer que esse livro seja um livro de filosofia, de questões filosóficas? – Deixa eu te falar uma coisa: – filosofia não dá dinheiro. As pessoas ao olharem o título imaginarão tudo: um drama, um policial…

AUTOR: – MAS É UM DRAMA! – UM DRAMA DA EXISTÊNCIA HUMANA; – A estética do livro ajuda a entender esse drama humano.

EDITOR: – Não sei, ainda não estou convencido. Como você fez para ter acesso a esse material?  Você comprou de alguém? Essa pessoa existe?

AUTOR: – Sim, essa pessoa existe. Eu até quis pagar pelo material que ele me disponibilizou; mas ele simplesmente não quis.

EDITOR: – Eu não consigo sequer imaginar uma capa pra esse livro…

AUTOR:  – Essa foi a única condição que ele me impôs.

EDITOR: – QUEM? O esquizofrênico?

AUTOR: – Sim.

EDITOR: – E qual?

AUTOR: – Que a capa tivesse a figura de um homem de terno e chapéu escuros, de costas como se estivesse indo embora, na mão direita uma dessas malas antigas de viagem que parecem uma caixa. Ele só me deu suas cartas, em troca de minha promessa quanto a capa fosse cumprida.

EDITOR (pausa para acender um cigarro; traga uma, duas vezes): – Entendi…; – até que a ideia não é ruim. (ele segura o trabalho final nas mãos; pelo jogo de olhar, deduziu algo) – Me diga mais uma coisa; só publicarei esse livro depois de saber de você a verdade.

AUTOR: – Não entendi; – o que você quer saber?

EDITOR: – É você o esquizofrênico, não?  Não se sinta ofendido com a pergunta;  – mas é possível que ambos sejam a mesma pessoa, e que nada do que me disse, de encontros na praça ou shopping, e cartas que recebia de suas mãos para a organização deste livro, sejam reais. Todo o tempo que teve, desde nossa primeira conversa, até esse instante, para organizar esse trabalho; – quem não me garante que desde o início, você estivesse e esteja surtado, e esse sujeito que você diz ser o esquizofrênico, não seja outra voz ou visão, produto de sua própria esquizofrenia?

AUTOR: – Não. Isso seria surreal demais.

EDITOR: – Seria mesmo?  – Quem você acha que é?

AUTOR: – Eu sou um escritor, e vim submeter meu trabalho a você afim de você o publicar. Como assim?  Isso é algum jogo? Você está me confundindo.

EDITOR: – Talvez seja essa intenção; – e quanto a mim? Quem acha que sou?

AUTOR: – Isso é alguma brincadeira, só pode! – Que jogo é esse? Aonde você quer chegar com isso? (Levanta-se com irritação, cata os trabalhos expostos na mesa que os divide).

EDITOR: – Apenas diga

AUTOR: (irritado) – Você é meu editor!  – Temos um acordo! – Lembra?

EDITOR: – Editor?  Eu?  Lembrar exatamente de que?

AUTOR: – Ora, deixa-me sair (pega todas as folhas e as coloca com irritação debaixo do braço); – não acredito que perdi todo meu tempo aqui; – Não tenho tempo para brincadeiras. Vou embora! (Levanta-se e parte em direção a uma saída – hesita ao ouvir o seu argumentador)

EDITOR: – Tem certeza que sou seu editor? – Me olha com maior atenção. Observe meu olhar apático e amarelado; meu rosto envelhecido, – olhe minhas mãos e veja como meus dedos estão castigados pela nicotina; – Por Deus, tudo que eu quero na minha vida é que você se vá; – mas você nunca vai!  Nunca sai! Sempre aparece aqui no meu quarto, diante de mim, e me perturba com essas histórias, e me chama alto, e conta que quer lançar um livro que tem na capa um homem de costas, vestido de terno escuro, com chapéu e uma mala estranha na mão; e diz que sou seu editor, e eu embarco na tua; – por cansaço e insistência, dou corda até ver se isso chega a algum lugar; – nunca chega; – nunca tem um fim. Não mesmo, que eu pudesse dizer: “– Nossa! Enfim paz!”.

AUTOR: – Ora! – Já ouvi o bastante!  Não ficarei nem mais um segundo aqui, ouvindo suas loucuras!

EDITOR: – Então vá; – tente ir. – Tente sair; – se conseguir será um bem que fará a mim.

(O autor dá alguns passos em uma determinada direção. Para. Fica confuso. Não há saída)

AUTOR: – Deixe-me sair; o que você fez com a saída?

EDITOR: – Ela nunca existiu. Nem saída, nem entrada; – você simplesmente está aqui, o tempo todo. Não sei quem é quem nessa relação: se você é produto de minha mente, ou se o contrário, – eu, um produto de sua.

(O autor, convencido de sua triste sina, se senta novamente. Há um desapontamento imenso em seu olhar; o editor apenas o observa)

AUTOR: – Mas é uma bela história

EDITOR: – Sim. É.

AUTOR: – E as pessoas a leriam.

EDITOR: – Possivelmente.

AUTOR: – Eu te odeio, sabia? Só pra constar.

EDITOR: – Eu também não nutro amores por você. A recíproca é a única coisa real e verdadeira aqui.

(FIM)