Por Maurício Campos (*)
O "Globo" de domingo (28/10) traz duas matérias sobre criminalidade e violência, bastante diferentes no enfoque, e com destaques ainda mais diferentes.
A principal chamada de capa é para uma reportagem que ocupa várias páginas, e que parece que continua hoje, sobre a participação de mulheres nas quadrilhas de tráfico a varejo baseadas nas favelas. É parte de mais uma "parceria" Globo/MV Bill/Celso Ataíde. Os globais Bill e Ataíde têm, aparentemente, presença garantida por muitos anos na grande mídia, graças à gigante do setor no Brasil.
A reportagem em si não traz muita novidade, não faz análise nem busca causas, fica na descrição entre pitoresca e "horrorizada". Mas insiste na correlação tráfico-crime organizado-favela. Então, mesmo não explicando grande coisa, quem a lê (e, brevemente, a verá, pois deve render uma série televisiva), levando em consideração o tamanho e o destaque da matéria, deve pensar que para "entender" e "buscar soluções" para o "crime organizado", é preciso estudar e colocar no foco a "favela" e o "tráfico" (a varejo).
Mesmo não contribuindo para solução de nenhum problema, a reportagem acaba levando a alguém impressionado a pensar que, uma operação assassina como na Grota em junho ou na Coréia neste mês, mesmo que questionável, é sinal de que a polícia busca realmente resolver algo, pois não está agindo "na favela" e "contra o tráfico"?
Mais grave ainda, uma vez que "revela" (quanta pretensão!) a participação de mulheres no tráfico varejista desorganizado, a reportagem acaba construindo o contexto que permitirá à polícia, quando atirar em mulheres na favela, dizer que estava "trocando tiros" com elas (a reportagem traz fotos enormes de garotas segurando fuzis). As mulheres baleadas e executadas, assim, começarão a entrar rapidamente nos registros de "auto de resistência". Isso não é futurologia, recentemente no Jacarezinho policiais do 3o BPM balearam e mataram a manicure Elisângela Ramos da Silva, que estava com seu filho de 4 anos no colo, e sua morte foi registrada pelos policiais como auto de resistência! Quer dizer, segundo os policiais, provavelmente Elisângela, mãe de quatro filhos e casada com um técnico em telefonia, estava segurando um fuzil numa das mãos e o bebê na outra (ver relato do caso no site da Rede contra a Violência, http://www.redecont raviolencia. org/Casos/ 184.html).
A outra matéria, que ocupa menos de meia página lá pelo meio do primeiro caderno, e sem nenhuma chamada de capa, é uma entrevista com o vice-coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas da Universidade Federal de Pernambuco, Adriano Oliveira, sobre seu livro recém lançado "Tráfico de drogas e crime organizado, peças e mecanismos". Adriano analisou nove operações da Polícia Federal e quatro CPIs, tendo como objeto redes de crime organizado, inclusive tráfico de drogas, e em todas registrou a participação de funcionários estatais, sendo que em seis casos a quadrilha tinha origem dentro do Estado mesmo.
O estudo permite a Adriano fazer afirmações como: quando mergulhamos nesse submundo descobrimos o quanto o Estado está envolvido. Portanto, onde está o Estado observamos o crime organizado … não temos como deixar de dizer que o Estado tem o seu lado bandido. Por causa da grande corrupção inerente a ele e das organizações criminosas que se formam dentro dele, o Estado não consegue funcionar adequadamente para combater o crime … Esse é um grande problema da academia brasileira e da imprensa. Não podemos reconhecer o crime organizado só nos morros … no Brasil o crime está associado ao Estado … ou nascendo dentro do Estado.
Ao contrário da "pesquisa" de Globo/Bill/Ataíde, o estudo de Adriano olha para o lado certo quando quer tratar de crime organizado (para o lado do Estado e dos empresários), e busca causas e mecanismos. A parafernália global não leva a nada, a não ser a erros e preconceitos, enquanto um estudo como o de Adriano, esse sim, é um bom ponto de partida para se entender como combater e desarticular as verdadeiras redes de crime organizado, aquelas que, no final das contas, criam o sinistro sistema que mergulha tantos jovens das favelas numa rotina de morte e violência.
Adriano teve a coragem que falta à maioria dos acadêmicos e jornalistas, de buscar as verdadeiras fontes do problema, e de não se entregar aos "temas" falsos da moda. Mas, além de coragem, teve os recursos, embora com certeza muito menores que os de Bill/Ataíde/Cufa. E, pensando nisso, não estranho que o seu estudo tenha sido feito numa instituição relativamente periférica (a UFPE), raramente mencionada quando se falam dos "especialistas de segurança pública". Aliás, não tenho conhecimento de nenhuma instituição de pesquisa aqui do centro-sul "desenvolvido" que tenha algo como um "Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas".
Porque é fato que, tanto ao nível do Estado como de instituições privadas (como a bem conhecida Fundação Ford), são abundantes os recursos para pesquisas sobre o "crime", desde que o objeto sejam as favelas e os pobres. O número de teses, publicações e ONGs mantidas com esse fim é realmente assombroso, principalmente aqui no sul maravilha. Porém, que dificuldade se alguém buscar recursos para fazer um estudo sobre crimes estatais, máfias estatais, corrupção e violência policial!
O que vale para o mundo da academia e das ONGs vale muito mais para o mundo da grande imprensa. O papel da grande indústria de mentira e desinformação que é a grande mídia não é mais simplesmente vergonhoso, é criminoso, porque é um dos mecanismos principais que hoje sustenta uma atitude genocida e fascista do Estado, e das classes médias aterrorizadas e manipuladas pela burguesia.
Esperamos que a nova geração de cientistas sociais e jornalistas oriundos das classes pobres perceba as armadilhas que os esperam, e concluam que o verdadeiro objeto de estudo dos pesquisadores favelados é a classe dominante e seu Estado, e não a favela.
(*) Maurício Campos é membro da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência