As grandes emissoras de mídia, seja TV, rádio ou internet noticiam os conflitos que envolvem facções criminosas mas não costumam nomear os atores envolvidos, essa prática embora não explicita nos manuais de redação perpassa todo o corpo das redações e contraria os princípios básicos da notícia. Não precisa ter estudado jornalismo para saber que ao contar uma história é necessário saber quem, quando, onde e por que. Mas tanto em redações históricas e de grande alcance quanto nas novas iniciativas de jornalismo, os nomes de facções e milícias não são mencionados mesmo que essa prática comprometa o bom jornalismo. Além disso, tal prática favorece o imaginário de que todo morador de favelas pertença a algum grupo criminoso, compromete as verdadeiras narrativas das cidades, não noticia o que realmente acontece entre as facções e não satisfaz a curiosidade do público em conhecer os territórios e cotidianos das favelas e, principalmente, o interesse das próprias facções em mostrarem seu poder.
Uma das cenas clássicas do filme “Cidade de Deus,” onde o personagem Busca Pé, jovem periférico e estagiário de um grande jornal do Rio de Janeiro, fica parado em uma rua entre dois grupos criminosos e intimidado a fotografar os grupos, sintetiza muito bem o interesse mútuo dos grupos de imprensa e das facções em registrarem o poder paralelo e ausência do Estado. Histórias de tráfico, favelas e até mesmo denúncias de chefes de Estado pertencendo e liderando grupos criminosos e grandes esquemas de corrupção frequentemente são explorados pelas mídias de entretenimento – cinema, novelas, séries com um grande esforço para gerar verossimilhança, mas já nos jornais são carregadas de eufemismos, ausências e culpabilização da pobreza.
Todas as grandes mídias noticiam com frequência “Disputa entre traficantes rivais aterroriza moradores”, “Líder de facção criminosa comanda tráfico em penitenciária X,” as manchetes com reportório desinformativo remetem a favela a um lugar perigoso, sem ordem e com necessidade de controle armado do Estado, mas quando os membros das gangues são cidadãos da classe média a associação às facções mesmo que não citadas torna-se inconcebível e traficantes tornam-se portadores de material ilícito, assassinos viram mandantes de crime doloso a vida, entre tantos outros que estamos acostumados a nos deparar nos noticiários. Mas enquanto a imprensa usa esse grande pacote de palavras que não dizem nada, os nomes PCC- Primeiro Comando da Capital, CV –Comando Vermelho, CRBC – Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade, ADA-Amigos dos Amigos, FDN- Família do Norte, SS- Seita Satânica, CVC –Comando Vermelho da Capital, SDC- Sindicato do Crime, estão nos muros, nas músicas e hinos entoados com sentimento de pertencimento , camisetas, pacotes de figurinhas, ônibus e metrôs e até mesmo em camisetas e bandeiras e fazem parte da vida de mais de 14 milhões de pessoas que vivem em territórios de favela por todo o Brasil.
Os embates entre PCC, CV, ADA e as outras milícias é feito na disputa armada, mas também no embate de idéias. Cada grupo tem seus ideais, suas regras e suas concepções de paz, justiça e liberdade. A adesão às ideias e pertencimento ao grupo são importantes não só para construção da força da milícia mas também em alguns casos é uma questão de sobrevivência. Em territórios onde há disputas de forças há códigos particulares que servem para reconhecer a família e identificar o inimigo. A imprensa avisar qual território pertence a qual facção ajuda não só os moradores e profissionais a se precaverem, mas também ajuda o público a entender a complexidade das disputas e principalmente tira a narrativa única da polícia. A imprensa não tem só dever jornalístico de nomear os grupos mas também o compromisso cidadão de narrar a cidade, entendendo o que cada sigla representa, suas demandas e maneiras de promover o que o poder público não promove e estratégias de gerir as milícias e se articular politicamente. Combater a violência e corrupção se faz com relatos especializados e se dando nome aos bois.