Eu queria ter ódio de você mas não consigo. Eu te amo de tal maneira por toda nossa história, que penso milimetricamente como medir minhas palavras para que elas não sejam como espada de dois gumes entre nós. Bem, talvez até fosse necessário essa tal espada, já que seu significado literal é que traga discernimento para os pensamentos e o coração.
Mas não. Mesmo diante dos fatos, prefiro medir cada palavra de modo que eu não me cale, mas que também não te cause ferimentos profundos. Esses momentos atuais estão nos consumindo de tal maneira que eu queria mesmo sentir ódio de você para ao menos não me sufocar diante de tudo. Mas a verdade é que não somos mais crianças para acreditar que somos iguais e eu não sei lidar com a tristeza que sinto ao te ver de um lado tão oposto.
Eu queria ter ódio, mas esses dias pensei em como você também sente o desgaste nos ombros e nos pés. Foram noites mal dormidas para chegar onde queria e quase sem perspectiva encontrou o seu lugar. Eu ainda sigo buscando meu lugar, mesmo que meus esforços, a gente sabe, tenham sido muitas vezes mais. Nosso tom de pele sempre declarou quem ficava e quem saia de cena. Nossa estrutura familiar também traziam lacunas bem diferentes que ora eram preenchidas e ora seguiam vazias do lado de cá. Na fase adulta, o corre sempre foi cansativo nos dois lados, mas a gente se lembra que chegava suada no final das contas. Lembra?
Mesmo assim, diante das diferenças sociais e raciais, andamos lado a lado, nos amando em nossas diferenças para que o amor pudesse vencer o medo. Lembro quando você segurou minha mão e disse: “Nunca vamos nos abandonar”. Assim, nunca desistimos e seguimos na convicção de que um dia estaríamos no topo. Lado a lado. Mas a corrida não foi e não tem sido justa e por inúmeros motivos, nos afastamos na estrada. Pensamentos e reflexões nos separaram e criaram realidades bem distintas.
Sim, eu sei que você lutou muito pra chegar até aqui e chorei com você por cada conquista, por cada dificuldade emocional para alcançar seu lugar, mas sabemos que as diferenças de estrutura social e emocional nos fizeram olhar o mundo de uma maneira bem diferente agora. Talvez tenha sido essas oportunidades diferentes, que nos fazem olhar agora para um mundo que não parece ser visto da mesma perspectiva.
Eu queria ter ódio de você, mas não consigo. Os laços que nos unem deveriam ser mais forte do que qualquer coisa. Sigo resistindo!
Lembra quando você viajou para a Europa para interromper a gravidez que poderia acabar com sua entrada na universidade? Nós estávamos lado a lado e mesmo eu acreditando que poderíamos dar conta juntas, essa era uma decisão apenas sua. Seus pais jamais poderiam saber, então você inventou uma viagem de última hora para um cursinho internacional. Pegou as economias guardadas e foi em busca do que acreditava.
Eu seguia aqui te amando, do seu lado e acompanhando as mensagens de SMS, informando que tudo estava bem. Eram 5h da manhã naquele mesmo dia e eu havia perdido a prova tão aguardada e importante. O caveirão estava na rua há dois dias de confronto e você sabe como é, ninguém entra ou sai pra não ser alvo certeiro das balas. Essa era a minha chance de entrar na universidade e de certa forma, também senti como se fizesse um aborto. Abortei o sonho que nunca mais chegou.
Seguimos a partir daí, caminhos bem diferentes e a dupla jornada na empresa de telemarketing de manhã, a padaria a tarde e o vestibular comunitário nos finais de semana, não me permitiram mais te acompanhar.
Hoje seguimos acreditando no amor, mas de formas diferentes. Mas nada é tão cruel como te ver e saber que você esqueceu tudo o que vivenciamos lado a lado. Dessa vez não há circunstâncias, mas escolhas e você decidiu por algo que coloca minha vida em risco e exclui todas as oportunidades que eu tenho de voltar para a corrida pelo topo.
Onde nos perdemos ou nos distanciamos?
Sigo querendo ter ódio de você, mas eu não consigo. Acredito que o amor vencerá tudo isso e a minha esperança é que você consiga visualizar que de acordo com a sua escolha, o amanhã pode não chegar.
Amo menos pra mim.