Na fila do embarque de volta para casa, a moça preocupada fala em voz alta o suficiente para ouvirmos: “Pai, qual é o número do seu assento?” Ela terá uns 35 anos e ele o dobro, mas disfarça bem. Responde, mas a filha já lhe tomou da mão o impresso para conferir: “Três A, pai, é logo na frente, e na janela; você prefere outro lugar?” O pai diz que não, está ótimo o assento, dá a impressão de que foi escolha própria. Pai e filha seguem pelo corredor e vou atrás, sem escolher quem invejo mais, ela ou o meu contemporâneo. Minha mais velha se parece com a jovem preocupada, e percebo sorrisos condescendentes na fila, como se cuidado com a velhice dos pais fosse regra geral. Não é, para desgraça de pais, mães e avós vítimas de maus tratos sob a guarda de descendentes até mais adultos que a filha do senhor à minha frente. A imprensa divulga todo dia casos de agressões, espancamentos e até mortes de patriarcas e matriarcas, e quando não é da família, o agressor é alguém pago para cuidar do idoso. É como o general Eduardo Pazuelo, nomeado e pago ministro da Saúde e, portanto, responsável por zelar pela população, dizendo que só tem Covid quem faz teste de Covid. É um luminar, inteligência superior, Jair deve ter uma foto dele na carteira das rachadinhas.
Acomodado na poltrona à espera da decolagem, observei passageiros pelo estreito corredor do avião com suas bagagens gordas e chego à conclusão tardia de que permitir às companhias aéreas cobrar por bagagem embarcada foi decisão de algum Pazuelo que também nunca pagou a roupa, a casa, o soldo e os extras, o tratamento médico e odontológico, o vôlei na praia nos fins de semana, a pensão vitalícia para a filha solteira, tudo por nossa conta. É como se o idoso ou a idosa nas mãos inescrupulosas dos descendentes contribuíssem para este estado de coisas com o seu provento, a sua magra sobrevivência. Certa vez conheci uma profissional de saúde contratada para cuidar de idosos num lar da Aeronáutica. Lá viviam mães e pais de brigadeiros e outros altos oficiais. Pense num asilo de alto luxo para idosos e terá o retrato do lugar. A fartura era tanta que ela levava para o posto de saúde onde também trabalhava remédios e materiais que, de outra forma, estariam fora do alcance.
Somos o país da desigualdade, contrastes gritam à nossa volta nas crianças que vendem balas aos passageiros de Mercedez Benz no semáforo, nas mulheres que nos abordam suplicantes entre gôndolas do mercado como náufragas nos canais da Veneza imaginária. Aqui o vice-presidente da república é general eleito por mais de 57 milhões de votos, grande parte de eleitores tão ou mais negros do que ele, e que no entanto enche a boca para dizer que não existe racismo, não somos iguais aos Estados Unidos onde ele serviu por dois anos às nossas custas e aprendeu que não é branco como supõe. Poderia ter sido mais óbvio: no Brasil não existe racismo contra sua digníssima pessoa.
Jair também negou o racismo, mas ele é o que se chama “galego do olho azul” e que por cima mente sem pudor, se contradiz a cada frase e já declarou que seus filhos não se casariam com negras porque tiveram boa educação. Agora mesmo negou ter chamado a pandemia de “gripezinha” mesmo diante da evidência de que o diminutivo foi incorporado ao nosso cotidiano pelo que falou no mês de março passado, a primeira em entrevista coletiva no Planalto e a segunda em pronunciamento por rádio e televisão, dias depois. Como diria Nelson Rodrigues, um turista que visitasse o país anotaria no seu caderninho: “O brasileiro é um mentiroso nato”.
Como o estilo é o homem, Bolsonaro expandiu o axioma a todo o seu governo e autoridades convidaram diplomatas estrangeiros para sobrevoar incêndios na Amazônia para mostrar-lhes que não há incêndios na Amazônia, negação essencial da filosofia aristotélica “nada pode ser e não ser simultaneamente”. É como Pazuelo e a vacina, e graças a esta deturpação, justifica-se o assassinato do cidadão negro no Carrefour de Porto Alegre no Dia da Consciência Negra e por dois brancos com o argumento de que teria agredido a esposa algum dia, segundo registros policiais. É uma variação do “estupro culposo” da justiça catarinense ou do “auto de resistência” e seu filhote “excludente de ilicitude” de antigo juiz paranaense hoje aspirante ao poder.
No esforço de exterminar o pensamento, Bolsonaro conta com incentivo e apoio da grande mídia brasileira, sempre disposta a dar uma mãozinha no árduo trabalho de manipular a opinião pública. Assim foi com Guilherme Boulos questionado no Roda Viva pelos engarrafamentos causados por manifestações dos Sem Teto, como se fosse possível protestar na rua sem atrapalhar o trânsito. Assim foi, também, com os professores em greve quando ocuparam a Avenida Rio Branco e O Globo gastou dinheiro em sobrevoo de helicóptero (batizado “Globocop” – entendedores entenderão) para estampar na capa do dia seguinte a foto “Falta de Educação”. Assim tem sido nas ocasiões em que manifestantes são “vândalos”, policiais sempre reagem e “baderneiros” quebram vidraças e ateiam fogo. Quando vejo essas situações sinto que estamos virados do avesso desde o descobrimento.
Só para encerrar, lembro Diego Armando Maradona, exemplo de jogador de futebol vindo da periferia para o estrelato internacional, habilidoso como poucos e contestador, esquerdista, socialista, amigo de Fidel, de Lula, de Chávez e de líderes populares em toda parte. Ao velório na sede do governo argentino, a Casa Rosada, afluíram estimados dois milhões em fila ordeira e sentida, em respeito sincero e sentido pelo ídolo das massas. À menção da cocaína, disse alguém “não me interessa o que Maradona fez com a sua vida, mas sim o que ele fez com a minha”, a tradução mais fiel do impacto causado pelo “pibe de oro” e pelo cidadão pensante sobre toda a Argentina e até além de suas fronteiras. O Globo, sempre ele, publicou texto com o título “Fora dos campos, Maradona usou ou foi usado pela política?” A autora Janaína Figueiredo fez a cirurgia de extração de cérebro do jogador depois de morto e deixou bem claro que o Brasil, agora muito mais do que antes, é um poço de acusações, frustrações e ódios. Mais uma vez mostramos a preferência pela alma branca de Pelé e a deselegância de Felipe Melo no jogo da vida.
E viva Carol Solberg!