O papel da família na “reinserção” do cidadão preso

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“A construção social da desigualdade é ditada por alguns fatores: símbolos, leis, normas, valores, instituições e subjetividade.”
(Vera Vieira)

Desde a pré-história, quando se organizou em grupos, o homem sentiu a necessidade de estabelecer regras de convívio, ou seja, limites, a fim de conviver com seus semelhantes. Acreditamos que o comportamento esteja intimamente ligado às crenças que cada sujeito formou ao longo da vida, determinando sua atitude e seu comportamento.

A sociedade, como um todo, também determina e é determinada pela forma como cada indivíduo interage com os outros. Não podemos compreender a ‘reinserção’ social sem a premissa dessa interação. É necessário o movimento de aproximação e descodificação desses atores (o cidadão encarcerado, sua família, os operadores do direito e a sociedade), para podermos pensar em reinserir o homem e a mulher presos, em condições de garantir-lhes o mínimo de adaptabilidade ao convívio social. Nesse processo, a família é o ator estratégico: é aquele que faz a ponte entre a sociedade e o (a) preso (a).

Precisamos perceber-nos no mundo como parte possível de interagir com o todo; não há resposta positiva sem a interação das partes. O trabalho para a ‘reintegração’ social do (a) preso (a) só começará a dar resultados significativos e que altere as estatísticas de reincidência quando o Estado e os operadores do direito perceberem o familiar como parte do processo de reinserção.

A família é um componente precioso para o resgate de princípios básicos de convivência, ética e moral. Por isso torna-se parceira essencial em qualquer trabalho em que a volta ao convívio social se faça presente. É estranho que até hoje os operadores do Direito não percebam a família como suporte de um trabalho de sensibilização.

Ela aparece em audiências com os juízes mais para ouvir do que para opinar. Não se percebe a família como contribuinte ativa para a produção científica, a não ser como público-alvo, e nunca como um ator importante na implantação do objetivo real e legal da execução da pena, que é a ‘reinserção’ de forma positiva e produtiva do cidadão e da cidadã presos.

Não se tem notícia do desempenho da família como parceira do Judiciário e do Executivo no balizamento de ações que gerem uma resposta positiva para a reincidência, por meio de ações pensadas e coordenadas, tendo a família como ponto central a ser trabalhado como sustentáculo para a volta dos cidadãos encarcerados.

Na formulação de políticas, é fundamental qualificar a participação desses atores com os quais se trabalha. Devemos ampliar as noções de direito e cidadania para muito além do que tradicionalmente é conquistado. Temos que observar as necessidades básicas dessa família, fazendo-a acessar uma renda mínima e consequentemente a segurança alimentar para, então, pensarmos em reintegrar alguém.

O cidadão preso não é um ser isolado em si mesmo, não é um morador desgarrado de Marte. Por isso pensar a volta desse indivíduo sem a devida preparação preliminar e um trabalho consistente de recuperação de toda a família faz com que o fantasma da reincidência seja uma constante.

A contribuição da família é de extrema importância e pode dar-se de várias formas: a partir da capacitação como forma de acessar novos conhecimentos e usá-los em palestras de sensibilização; atuar como agente multiplicadora de informações sobre cidadania, saúde, valores morais e éticos etc.; monitorar, em parceria com o Estado, atividades do cumprimento das penas alternativas; contribuir para a mudança de algumas políticas públicas através da sua experimentação; detectar e agregar familiares com nível médio e superior aos projetos desenvolvidos para presos; capacitá-los para utilizar mecanismos lúdicos e culturais para a sensibilização dos seus familiares jovens.

As relações não podem se balizar no binômio “vigiar e punir”, como diz Foucault. A família deve ser vista não por meio dos estereótipos “lombrosianos” e, sim, como um interlocutor confiável, tendo um papel intransferível, que é o de agente ressocializador, e deve ser copartícipe e corresponsável na reinserção social do seu preso. Já que cumprem pena compulsoriamente, devem ser também tratados de forma a poder receber o seu familiar e participar das atividades e capacitações pré-reinserção que deveriam ser implantadas nas unidades prisionais como um conjunto de oficinas profissionalizantes, artesanais, lúdicas, como forma de preparo para a volta ao convívio social.

Envolver a família em um trabalho de resgate pontual (o do seu familiar preso) tem na realidade um objetivo muito mais abrangente e profundo do que única e exclusivamente a preparação para a volta do seu familiar. Acima de tudo, tal atitude traz a família para o centro das discussões como mais uma possível parceira, trabalha a sua autoestima, agrega valor ao trabalho sofrível feito nos Estados e oferece sustentáculo estrutural para futuras relações dessa família, que, a partir dessa visão inclusiva, passará a se perceber cidadã.

Ainda não se tem um projeto-piloto que capacite essa população. Ainda somos entendidos como atores de menor importância, e não somos vistos como parceiros confiáveis para a implementação de ações e/ou discussões sobre políticas públicas inclusivas.

Faz-se necessário usar o princípio da razoabilidade para entender o papel a ser desempenhado pela família em parceria com o Estado para o resgate não só do indivíduo, mas de milhares de famílias. Detectar, capacitar e incluir essa família na vida produtiva da sociedade são atitudes de suma importância na volta do cidadão e da cidadã presos.

O trabalho de reconstrução é o mais difícil; requer cuidado, paciência e disciplina. É necessário desarmar os espíritos e aguçar os ouvidos de todos os atores para que se percebam e se escutem, objetivando um trabalho conjunto para minimizar os efeitos das ações não-inclusivas que o Estado oferece no decorrer do cumprimento da pena que, por não ter o caráter educativo, fomenta o ódio, afastando o indivíduo do convívio social produtivo, fazendo-o voltar a reincidir nas ações negativas.

A família não deve ser vista como uma mera vítima estática da aplicabilidade da lei que a pune compulsoriamente. Ela deve ser percebida como peça-chave para o trabalho de diminuição da reincidência. Não perceber a família no contexto da vida desses homens e mulheres presos é não investir na possibilidade de resgate, no retorno da violência a níveis aceitáveis. Sabemos que as prisões são linhas de produção ativas de aperfeiçoamento da marginalidade, por isso é urgente a inclusão da família no contexto da reinserção social como parceira agregadora de conhecimento empírico, na construção de uma via para um diálogo.

 

É necessária ainda a sensibilização da iniciativa privada para a importância do trabalho preventivo, através da absorção da força de trabalho do egresso, além do estímulo ao mercado por meio de incentivos fiscais a empresas que absorvam em seus quadros egressos e empresas que instalem oficinas laborativas nas unidades prisionais.

É necessário que as universidades possam participar desse esforço conjunto através de seus professores e estagiários na criação de um banco de horas multidisciplinar para o acompanhamento e suporte na reintegração social do preso e sua família. É necessária a participação da sociedade civil organizada por meio das suas instituições representativas – organizações não-governamentais (ONGs), grupos de apoio, igreja, fundações – no acompanhamento técnico de atividades de pré-reinserção nas unidades prisionais e no monitoramento das famílias e do egresso nas atividades previstas em parceria com o Poder Judiciário e o Executivo.

É preciso um esforço conjunto no trabalho preventivo, humano e comprometido não só com o resgate do indivíduo, mas também, como uma ação estratégica de segurança pública. Precisamos avançar e construir uma interface com o diferente, neutralizar ações negativas por meio de ações solidárias, reconstruir o conceito de solidariedade cidadã, respeitando as diferenças e estimulando as iniciativas que conduzam ao crescimento qualitativo do cidadão preso e da sua família.