Uma das premissas básicas do jornalismo deveria voltar a ser “O leitor não é burro”, aí incluindo ouvinte e telespectador. Foi assim no passado anterior à ascensão da Rede Globo. Existia até o Jornal de Debates, que publicava opiniões, reflexões e indagações de seus leitores e nada mais. Circulava nas bancas de jornais e servia de tribuna a variadas discussões. Em sua primeira edição, em 1946, estabeleceu objetivos e regras:
“Este jornal apresenta-se como uma tribuna absolutamente livre que agasalha toda e qualquer ideia, manifestada com proficiência sobre assuntos políticos, econômicos e sociais, não importando a cor política, a escola filosófica e o credo religioso dos autores. Não abriga, porém, ataques pessoais, diretos ou indiretos, nem injúrias, claras ou veladas, porque ideias só se destroem com ideias. Pelo debate, polêmica e controvérsia, em alto nível, pelo acolhimento imparcial de todas as correntes de opinião, este jornal pensa concorrer para o desenvolvimento da democracia no Brasil. Aqui, com efeito, todos terão iguais oportunidades de manifestar livremente seu pensamento, sem nada pagar: para o Jornal de Debates ideias são bem comum, patrimônio social.”
Circulou por cerca de cinco anos e sumiu, para voltar na década de 1970 pelas mãos de Fernando Gasparian, mas durou menos ainda. Em 2006, o jornalista Paulo Markun, então diretor e apresentador do programa Roda Viva, na TV Cultura de São Paulo, lançou o jornal na internet, com grande sucesso. Nos primeiros nove meses, o site registrou mais de 2 milhões de visitantes únicos, 10 mil usuários cadastrados e 5 mil artigos publicados, tendo colocado em discussão cerca de 300 temas.
Esse êxito inicial mostra que por pior que seja o reino da mediocridade nem tudo está perdido, mas é urgente recuperar o espaço da discussão na mídia, torturado na ditadura militar, sufocado na redemocratização, estrangulado nos anos de Temer e Bolsonaro.
A homogeneização da linguagem jornalística se impôs de maneira empírica, segundo os editores ditavam dentro das redações, até surgirem, com verniz professoral e técnico, os manuais de redação e estilo dos grandes veículos, para melhor moldar jornalistas à verdade dos empresários do setor. Assim, oferecendo aos leitores a ilusão de diversidade de opiniões, jornais e revistas se esforçam para aparentar independência e isenção que não possuem.
O exemplo mais espetacular é a Folha de S. Paulo, que de tanto dar uma no cravo e outra na ferradura foi excluída dos processos licitatórios do governo federal, em mais uma atitude ditatorial. Sofre perseguição ilegal, inconstitucional e imoral, mas quem se preocupa com isso hoje em dia?
No Rio de Janeiro, o prefeito Marcelo Crivella proibiu na terça-feira da semana passada o jornal O Globo de participar da entrevista coletiva sobre o Révéillon da cidade, o mais concorrido do país e um dos destaques do ano novo na mídia mundial. Em solidariedade aos repórteres do jornal, TV Globo e Globonews abandonaram o evento. Emblematicamente, pagos pelo mesmo patrão.
Os dois casos aqui citados denotam a burrice generalizada que se abateu sobre o país. Presidente, governador, prefeito, parlamentares e respectivas assessorias de imprensa não mostram nenhum respeito aos cargos que ocupam e à chamada opinião pública.
Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, chegou a dizer que a Casa não é obrigada a fazer o que o povo quer. Aprendemos, então, que os burros do lado de cá servem apenas para votar nos burros magníficos de Brasília. Eles fazem o que acharem melhor para a récua.
Em nenhum desses episódios a imprensa se revoltou na defesa dos seus leitores e de si própria, o que seria outra de suas funções básicas, elementares, a legítima defesa. A mídia está de tal forma amalgamada ao poder político que não cogita rasgar a máscara e desafiá-lo. Defende, isto sim, seus interesses financeiros, longe dos interesses editoriais da massa de leitores.
Se nos jornais a cena é triste, na mídia eletrônica é trágica, nenhuma emissora de rádio ou televisão denuncia o genocídio dos pobres nas nossas favelas, mas se limita tão-somente ao registro das mortes e às versões oficiais, o “outro lado” da verdade dos fatos.
O massacre de Paraisópolis é um escândalo que clama aos céus; no entanto, a imprensa se restringe ao exercício retórico para referendar o que disse a polícia, minimizando ou calando vozes das famílias cujos filhos foram assassinados e dos organismos de direitos humanos. Mas deu espaço ao governador João Dória, para quem a polícia agiu corretamente.
Quando se trata de manifestações públicas, então, é repugnante a postura da mídia, escondendo passeatas, discursos, protestos, sobretudo sindicais, ao tempo que destaca ameaças de governantes e juízes.
Tanto ou mais que o silêncio cúmplice diante dos absurdos ditos e praticados por ministros são as reações dos setores imbecilizados da sociedade, a parcela sensível às teorias da globalização comunista, da invasão islâmica, da arte subversiva e por aí vai.
Qualquer idiota fardado interrompe espetáculos, fecha exposições, apreende livros. A ministra da família e dos direitos humanos foi ao cúmulo de citar a cerveja bock como estímulo ao boquete! Um imbecil ressuscita a tese dos anos 1950 de que o rock é coisa do demônio, leva à gravidez indesejada e ao aborto.
O presidente da república acusou Leonardo Di Caprio de financiar queimadas na Amazônia, e o ministro do meio ambiente deve ter se mordido de inveja por não ter pensado esta idiotice primeiro. É um carrossel de bobagens e asneiras girando diante dos nossos olhos.
Paulo Guedes, o posto Ipiranga da Esplanada dos Ministérios, disse em Washington que manifestações de rua são radicalização da esquerda e contra elas pode vir um novo AI-5. Mas, até a peruca do Luiz Fux sabe que atentado à democracia é a criminalização da oposição e a volta dos instrumentos excepcionais da ditadura.
Neste momento em que tanta ignorância, tanto obscurantismo e tamanha desfaçatez formam o dia a dia da nossa imprensa, é mais importante reafirmar sempre, em todas as oportunidades, o contrário, a verdade.
A nova imprensa independente, combativa e engajada na luta da sobrevivência não só dos trabalhadores e das minorias sociais, tem a obrigação de defender o seu lado, com o mesmo ânimo com que a mídia golpista sustenta as barbaridades ditas e cometidas pelos neofascistas que tomaram o país de assalto.
Mais do que antes, estamos do lado dos pretos, pobres, perseguidos. Alguém já afirmou que a história é contada por quem a escreve, não por quem é vítima dela. Cabe a nós pelo menos tentar mudar, expondo o nosso e não o outro lado que já tem o espaço que quer na mídia e na mente das pessoas.