Enquanto se discute punição a crimes do regime militar, a tortura continua uma prática comum no Brasil
Francisco Alves Filho e Hugo Marques
Na quarta-feira 13, o presidente Lula convocou os ministros da Defesa, Nelson Jobim, e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi. A reunião tinha como objetivo acalmar os ânimos em torno de um decreto assinado pelo próprio Lula em dezembro, criando o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos. Por intervenção direta do presidente, o ponto mais polêmico foi, então, modificado: a chamada Comissão da Verdade, que investigaria crimes de tortura durante os anos de chumbo, teve suas atribuições revistas. O trecho sobre delitos de agentes da repressão política foi suprimido e um grupo de trabalho vai discutir como fazer a comissão funcionar sem arranhar a Lei de Anistia. “Esse negócio de punir os crimes da repressão política é um assunto para a Justiça, não é para o Executivo”, disse Lula. Poucas horas depois, as redes de tevê escancaravam para todo o Brasil que o absurdo da tortura não foi uma exclusividade da ditadura e que suas vítimas não se resumem à elite intelectual e política que hoje está no poder. Por meio de uma câmera de celular, parentes de Jerônimo Júnior, preso na cadeia municipal de Santo Antônio do Descoberto, em Goiás, a poucas centenas de quilômetros do gabinete presidencial, filmaram mais um caso de tortura no País. Além de pisar e dar tapas no rosto de Jerônimo, o agente penitenciário Kalil Araújo utilizou um saco plástico para asfixiar sua vítima, que desmaiou. Diante da barbárie registrada em vídeo, Araújo foi demitido e responderá a processo. Na maioria das vezes, no entanto, os agressores ficam impunes.
Como mostram as denúncias, os abusos são prática comum entre policiais, agentes penitenciários, militares das Forças Armadas e até a Força Nacional de Segurança Pública, criada há apenas cinco anos. “Os agentes da ditadura aperfeiçoaram ‘tecnicamente’ a prática da tortura, importando métodos dos Estados Unidos”, diz o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário Nacional de Segurança Pública. Para fechar o círculo vicioso, ainda hoje são raras as punições dadas aos agentes do Estado acusados de violência contra os presos (quadro acima). A impunidade alimenta a truculência sob os olhos condescendentes da sociedade. “Existe a ideia de que alguns, por serem tachados de perigosos, são menos humanos e podem ser tratados com violência”, diz Cecília Coimbra, do grupo Tortura Nunca Mais. O resultado é uma rotina de abusos cujas vítimas agora são majoritariamente os mais pobres.
Foi assim no caso de Andreu Luiz Silva de Carvalho, que tinha 17 anos quando foi torturado até a morte no Departamento- Geral de Ações Socioeducativas (Degase), onde ficam presos os menores infratores do Rio de Janeiro. Acusado de roubar celular e dinheiro na praia de Ipanema, ele tinha sido mandado para aquela prisão pela segunda vez. Entrou no Degase (ex-Funabem) no primeiro dia de 2008 e recebeu como cartão de visita um soco no rosto. Revidou. Foi espancado e não viveu para contar a história. Segundo testemunhas, cinco funcionários da instituição, tendo à frente o agente Wilson Santos, submeteram Andreu a uma bárbara sessão de espancamento. “Quebraram cabos de vassoura para furar o corpo dele, jogaram cadeiras, mesas e uma lata de lixo em cima do garoto”, relata a mãe, Deize Silva de Carvalho, 38 anos. “As testemunhas dizem que eles encheram sacos com cascas de coco vazio e bateram na cabeça do meu filho com eles.” O laudo do hospital para onde fora levado atestou “agressão física” e também o laudo da perícia apontou vários indícios de agressão. Apesar disso, ninguém foi punido até agora. Deize não se cansa de denunciar a tortura que matou seu filho e já foi ameaçada por isso. “Se me matarem, pelo menos vão saber que não desisti”, diz ela, que tem outros três filhos e mora no Morro do Cantagalo, em Copacabana, zona sul do Rio.
Também as Forças Armadas, tantos anos depois do fim da ditadura, continuam a cometer excessos. O jovem carioca J.O., 17 anos, foi vítima dos militares. No dia 5 de novembro de 2008, ele e um amigo pularam o muro de um quartel do Exército desativado, em Realengo, zona oeste do Rio, para fumar maconha. Foram flagrados pelos sentinelas e passaram a ser agredidos. “Fomos torturados com choques elétricos, o que fez com que a pele de minhas costas pegasse fogo. Pensei que ia morrer naquele momento”, diz. J.O. sobreviveu, mas com sequelas: perdeu 20% da visão do olho esquerdo, teve cortado um pedaço da orelha e tem marcas nas costas. “Queremos que o Exército pague os remédios e o tratamento dele”, reclama Maria Célia Furtado, a mãe adotiva. Dois anos depois, o processo corre na auditoria militar, sem previsão de término. Procurado por ISTOÉ, o Exército preferiu não se manifestar sobre o assunto.
Casos como o de J.O. e Andreu repetem-se aos montes nas cadeias brasileiras. De acordo com um relatório que está sendo preparado pela Pastoral Carcerária, desde 2006 foram registrados 281 casos de tortura praticados por agentes públicos, em diferentes Estados do País. Esses foram casos que chegaram até a Pastoral. Os números reais de práticas usadas desde a época em que os militares estavam no poder são muito maiores. “A tortura é o terror do Estado. É como se fizesse parte do pacote da pena, que não se limita à privação de liberdade”, afirma José de Jesus Filho, assessor jurídico da Pastoral.
A diferença agora é que os torturados não são mais estudantes politizados, que conhecem seus direitos e têm voz ativa nos meios de comunicação. Boa parte da geração de militantes de 40 anos atrás assumiu o poder no País e, agora, busca Justiça pelos abusos que sofreu. Infelizmente, as vítimas dos anos de chumbo concentram suas energias em ações revisionistas em vez de lutar com afinco para que o mesmo sofrimento por que passaram não seja repetido com tanta frequência e impunidade hoje. Afinal de contas, não é a ideologia ou a razão por trás de um crime que justificam a violência desenfreada praticada por agentes do Estado contra infratores da lei. E o governo federal deveria, além de impedir a tortura, tratar as vítimas de hoje com o mesmo apreço que trata as vítimas de um passado que insiste em se repetir no presente. Até agora, pelo menos, não é isso o que se tem visto no Brasil.
Colaborou Luiza Villaméa
FONTE: Revista ISTO É