É necessário que se compreenda que o cenário de caos social e violência urbana que o Rio de Janeiro vive hoje é resultado de um processo secular. Poderíamos até dizer, assumindo o risco do exagero, que deveríamos prender o primeiro Cabral e depois o segundo. De Pedro Álvares a Sérgio, a estrutura social do Rio de Janeiro foi montada em cima da opressão de povos: primeiros os indígenas e depois os negros, interesses escusos e políticas de exclusão.
Vale lembrar que após o descobrimento da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1502, o local foi “abandonado” pelos portugueses por cinco décadas, até que por volta de 1555 os franceses fizeram uma ocupação territorial e montaram uma vila, em “parceria” com a tribo local, os índios Tupinambá. Entretanto, em 1565, Estácio de Sá implantou a primeira “Unidade Pacificadora” do Rio, expulsando os franceses, dizimando os índios “rivais” e implementando uma ocupação portuguesa na cidade, com sua posterior fundação formal em primeiro de março de 1965.
Segundo pesquisas internacionais, entre 1500 e 1856, de cada cinco negros escravizados no mundo, um colocou o pé no Rio, seja para ficar ou para ser encaminhado a outras cidades e vilarejos do país.
Reporta a mesma pesquisa que no total cerca de 2 milhões de pessoas escravizadas chegaram ao Rio. O Brasil recebeu 40% dos negros escravizados no mundo e o Rio de Janeiro 60% do total nacional.
Já chegamos a ter mais negros escravizados do que brancos libertos na cidade carioca. Posterior a abolição em que negros foram jogados no mercado após serem tratados como coisa ou objeto por séculos, temos todo o desleixo do governo brasileiro com esse povo. Alberto Passos diz em seu livro As classes perigosas: banditismo urbano e rural que no Brasil, no final do século XIX, era mais fácil você conseguir ser dono de terra sendo um estrangeiro recém-chegado para trabalhar nas lavouras do que sendo negro liberto após anos de sofrimento.
Após isso, vieram as políticas higienistas do prefeito Pereira Passos por volta de 1900 – sim Eduardo Paes só reciclou o que já foi feito – que, entre outras coisas, acabou com os cortiços (moradias populares), originando as primeiras favelas, em especial da Providência (a primeira favela do Brasil) e empurrou o povo negro para distante do centro e dos polos de trabalho em direção às moradias precarizadas, levando a uma explosão de comunidades carentes. As favelas são os quilombos do século XXI.
Onde quero chegar é que, todo esse caos social que vivemos hoje no Rio de Janeiro, que descamba em violência urbana, privada e estatal é fruto de um passado de exclusão e exploração de camadas menos favorecidas da sociedade carioca, iniciando nos índios Tupinambás, mas, principalmente, passando por todo o sofrimento vivido pelo povo negro em solo carioca, seja durante a escravidão ou após o fim formal dela. O passado escravocrata e de massacre de um povo, que nunca tentou-se corrigir – e sim, cotas não é um favor – reflete nas relações sociais caóticas que temos hoje. Uma sociedade racista e classista, que te julga pela sua cor e pelo que você pode oferecer, sobretudo, financeiramente falando. A verdade é que passados 516 anos e dois “Cabrais” depois, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro paga um preço pelo seu passado.