Na primeira segunda-feira do ano, publiquei aqui mesmo que o trumpismo é uma nova força republicana na política americana e não deixará o poder em nome da alternância republicano-democrata quando Donald Trump deixar a Casa Branca no dia 20. O movimento surge como dissidência radical no partido sem a adesão de qualquer dos nomes estelares como o ex-presidente George W. Bush, mas vem com o respaldo na massa republicana ainda saudosa de Reagan e a simpatia do complexo industrial-militar que faz pulsar o coração do establishment.
Os invasores do Capitólio no dia 6 eram uma horda de celerados com bandeiras, suásticas, dizeres contra negros, hispânicos e judeus, não necessariamente nesta ordem. E como suprema ironia da história, no mesmo dia da invasão os dois senadores que faltava eleger na Georgia aconteceu de serem um negro um judeu, a conta justa para os democratas terem a maioria no Senado, um bônus para Binden.
Cinco pessoas morreram na invasão do Capitólio, duas em situações bizarras: uma mulher veterana da guerra do Iraque abatida por um tiro no peito pela polícia legislativa e um colecionador de armas pesadas da Virgínia do Oeste, fã dos confederados, que disparou sem querer choques elétricos dentro da calça, atingiu seu escroto e morreu do coração – talvez o primeiro ataque cardíaco de burrice nos compêndios de medicina. E vamos ficar neste casal infausto apenas.
É necessária atenção nesses primeiros momentos do ano para não nos distrairmos, o tempo fugir ao controle, e quando percebermos, estarmos a meia jornada ou mesmo ao final dela. O ritmo tem sido frenético, graças a Trump, seus advogados e seguidores. As coisas acontecem muito depressa, não há relógio que imponha juízo aos que querem a nova democracia americana, uma ditadura orwelliana com direito ao “Grande Irmão” e seu Ministério da Verdade que só administra a mentira, a polícia que só espiona cidadãos e a verdade é tão subversiva que pode custar a vida de qualquer um.
O “Big Brother” – longe de ser o show fútil da televisão – traduzirá, enfim, o que os criadores de Jair Bolsonaro puseram-lhe na boca, como lema de campanha: “Conhecereis a verdade e a verdade vós libertará” (João 8:32). A citação bíblica é mais uma interpretação deturpada, ou, como se diz por aí, “fake”. A verdade de que João fala é aquela que o próprio Cristo disse a Tomé: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai, senão por mim”. Conhecer a verdade não é, como se entende agora, espalhar que houve fraude nas eleições ou que não houve nem há “rachadinhas” nos bolsos de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz e companhia bela no Brasil.
O que falta ao brasileiro já de uns temos para cá – e ao americano também, como depreendemos da quarta-feira no Capitólio – é o hábito de ler e interpretar em sala de aula, sob orientação do professor. Antes, desde as primeiras séries, as crianças eram treinadas na leitura e interpretação em voz alta, diante da turma. Era o primeiro passo para procurar entender o que leria e ouviria adiante. Sem esse exercício primeiro, primário, chegamos em poucas décadas ao fenomenal gado trumpista e bolsonarista sem capacidade de análise, dedução, sem cognição, em suma.
O jogo político vira ilusionismo, enganação. Trump atribuiu a fraude inexistente ao voto pelos Correios amplamente utilizado por causa da pandemia. A denúncia foi desmentida pelo próprio Partido Republicano mas Trump ignorou: a ele só interessa a “sua verdade”, a versão do Grande Irmão, e os cidadãos que repitam o bordão mecânica e bovinamente, como temos vários exemplos aqui também.
No Brasil, a propósito, Bolsonaro se aproveita da confusão americana e “importa” a ameaça inexistente, porque nosso sistema é eletrônico. O arremedo de Grande Irmão defende, então, a volta do voto de papel para evitar a fraude que não haverá na urna eletrônica. Qualquer pessoa versada em leitura e interpretação facilmente percebe maldade na premissa presidencial.
Assim como o americano médio, o brasileiro também é fruto da educação que não ensina as crianças a entender e a dizer em suas próprias palavras o que acabaram de ler e ouvir. No ano passado, a plataforma Redação Online, de reforço a estudantes para escrever e interpretar suas redações, divulgou estudo em que diz: “Com dados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos, de 2016, dos 70 países analisados pelo Pisa, o Brasil ficou na posição 59 nos requisitos de leitura e interpretação. Isso não causa estranheza que os 537 mil alunos tiraram a nota zero, no ano de 2014 – isso constitui 10% dos 6 milhões de participantes. E com base na avaliação de 2017, 309 mil redações também obtiveram notas zero. Desses discentes, somente 53 atingiram números altos em notas”.
No cenário mais grave, o estudo mostra que 4% dos estudantes que chegam à universidade podem ser considerados analfabetos funcionais, ou pessoas que leem mas não entendem o texto e cuja habilidade maior é desenhar o nome.
Há relação óbvia entre o incrível desenvolvimento das comunicações graças aos avanços tecnológicos e a defasagem crescente em relação ao processo pedagógico. Esse alheamento ajuda a entender, por exemplo, a aceitação do “kit gay”, da “mamadeira de piroca”, da falsa “cura gay”, do azul para meninos e rosa para meninas e, logo, da Terra plana, da ignorância como projeto ideológico, da negação da ciência, do estudo e do conhecimento acumulado.
É difícil prever o que nos reserva o futuro a seguirmos nesta batida de aceitação sem questionamento de tudo que se ouve e se lê e sobretudo de tudo o que se repete nos discursos políticos, nos cultos religiosos e nas reuniões de doutrinação em clubes de serviços, condomínios residenciais, escolas, quartéis e demais prédios públicos franqueados à disseminação do obscurantismo.
As demonstrações públicas em Washington na semana passada são a amostra da redução dos Estados Unidos a uma das repúblicas de bananas que implantou e ainda mantêm em países da América Latina onde a inteligência está interditada e o gado humano vê “teoria da conspiração” em tudo que não compreende.