Desde que me entendo por gente, sempre escutei e confesso que até mesmo já reproduzi a comum expressão que usamos em frases como “Ai, para com esse jeito de favelado!”. Quando tomei consciência do que realmente é ser favelado e parei de reproduzir tal fala, passei a refletir sobre essa expressão. Esse tipo de discurso me motivou até a fazer minha monografia durante a graduação, mas aí é outra história.
Durante o passeio turístico do Rolé dos Favelados aqui no Morro da Providência, o guia Cosme Felipsen, que também mora na Providência, levantou a questão: afinal, o que é ser favelado? Essa pergunta tem várias respostas. Hoje, a minha concepção é de que favelado é aquela pessoa que mora nos morros e favelas, simplesmente. Mas, no início do povoamento dos morros em fins do século XIX e mais ainda no início do XX, morar na favela significava tudo aquilo que a elite repudiava: o lugar dos pobres.
Morar na favela significava ser excluído e, ao mesmo tempo culpabilizado, por todas as mazelas que assolavam o Rio de Janeiro. Favelado era bode expiatório. Era ou ainda é? Para muita gente que mora na favela – pasmem! -, chamar o outro de favelado ainda é, sim, sinônimo de falta de educação. É possível compreender a reprodução desse discurso por pessoas que moram nas favelas e que acaba desqualificando as próprias, uma vez que, por anos a fio, tal pensamento foi construído para que os favelados se contentassem com o seu lugar na sociedade através dos olhos da elite e ou até mesmo da classe média.
Outro dia, vi o compartilhamento indignado numa página do Complexo do Alemão de pessoas que, ao verem uma notícia sobre o terrível tiroteio que acometeu a região durante a semana, comentaram que crianças da favela não precisam de escola, uma vez que já nascem com vocação para a bandidagem. São pessoas que, se você olhar mais de perto, se intitulam pessoas de bem. Até hoje, se dizer morador de favela pode ainda trazer prejuízos, seja num emprego ou num relacionamento. O estigma sobre a população favelada permanece de forma escancarada. O que as pessoas fazem questão de não enxergar é que a falta de educação, boa índole ou empatia independe de condição econômica. Tem gente mal educada dentro da favela e muitas outras fora dela – até mesmo com diploma de doutorado na mão!
Sendo assim, é por essas e outras que nós, favelados, devemos possuir consciência crítica da nossa própria história e condição para desconstruir dia após dia um estereótipo centenário que ainda nos mantém propositalmente neste não-lugar. Numa sociedade que nos enxerga como escória, ser favelado é resistir.