Geovani Martins nasceu em 1991, no bairro de Bangu, na cidade do Rio de Janeiro. Realizou durante sua vida diversas profissões, entre elas: atendente de lanchonete, homem-placa, garçom de bufê infantil e barraca de praia. Entre os anos de 2013 e 2015 participou da FLUP, a Festa Literária das Periferias, evento realizado todo ano no Rio, que tem por objetivo difundir o debate sobre literatura nas favelas.
Os contos do autor, em especial, aqueles que estão no livro O Sol na Cabeça foram muito elogiados por seu grande potencial criativo, e foram bem recebidos pela critica nacional. O livro foi amplamente divulgado, e alguns escritores e cantores brasileiros fizeram questão de elogiá-lo. O conto de abertura tem por título Rolézim, na linguagem mais próxima da oralidade possível, sim. E o texto parece ter sido especialmente pensando para conseguir arrebatar o leitor do seu próprio bairro. Ou melhor, fazer com que o morador que lesse conseguisse se projetar para dentro da história, e imaginar que as possibilidades da narrativa literária e os modos de narrar (inclusive com gírias e falas regionais) também podem estar contidos em um livro, em especial os que trazem poesia e parecem, por vezes, estarem distantes da realidade periférica.
Em uma postagem anterior havíamos falado acerca do assunto presente neste conto, por este motivo não voltaremos a ele nesse texto, pois o objetivo principal é poder revelar alguns dos aspectos que podem ser percebidos quando fazemos a leitura do mesmo, e porque estes aspectos podem ser interessantes para o leitor de primeira viagem desta narrativa.
Forma de narrar
“Acordei, tava ligado o maçarico! Sem neurose, não era nem nove da manhã e a minha caxanga parecia que tava derretendo. Não dava nem mais pra ver as infiltração na sala, tava tudo seco. Só ficou as mancha: a santa, a pistola e o dinossauro. Já tava dado que o dia ia ser daqueles que tu anda na rua e vê o céu todo embaçado, tudo se mexendo que nem alucinação. Pra tu ter uma ideia, até o vento que vinha do ventilador era quente, que nem o bafo do capeta.” (MARTINS, G. Primeiro parágrafo: Reprodução)
Em Rolézim quem está narrando a história não parece estar distante dela, mas e sobretudo, incluído nesta realidade em que vivemos e atento a questões sociais relevantes. A voz do narrador (aliás, o próprio narrador) a todo tempo convida o leitor a ser envolvido em sua casa, nas suas relações sociais e até mesmo em sua forma de falar. O conto consegue transpassar qualquer meio que o impeça de se comunicar com seu ouvinte mais primário, diria eu, alguém da própria favela. Essa manifestação da representação é dada principalmente através de uma oralidade latente e que rompe com os padrões de ordem das palavras ou mesmo do entendimento dela. Ressalto esse aspecto, pois alguém que provavelmente não pertença ao meio social do autor não conseguiria sequer entender algumas das gírias citadas em sua narrativa, pelo contrário, teria de pesquisar ou mesmo buscar entender a significação das gírias e algumas palavras. O objetivo do autor não parece ser simplificar as significações ou mesmo ridicularizar um dialeto regional, mas revelar suas nuances e complexidades sem se preocupar se o leitor iria entender ou não, mas demonstrar que também há uma literatura rica de palavras e significados e cheia de complexidades.
Violência Seletiva
“Quando nós tava quase passando pela fila que eles armaram com os menó de cara pro muro, o filho da puta manda nós encostar também. Aí veio com um papo de que quem tivesse sem dinheiro de passagem ia pra delegacia, quem tivesse com muito mais que o da passagem ia pra delegacia, quem tivesse sem identidade ia pra delegacia. Porra, meu sangue ferveu na hora, sem neurose. Pensei, tô fodido; até explicar pra coroa que focinho de porco não é tomada, ela já me engoliu na porrada.” (MARTINS, G. Décimo sexto parágrafo: Reprodução)
É interessante notarmos também o tom de denúncia que está presente na obra para revelar que as pessoas mais pobres vivem uma certa “segurança-insegura”. Quero dizer com esta palavra, que a policia representa no conto uma forma de segurança da sociedade como um todo, no entanto, quando acontece o primeiro furto na praia e até mesmo quando o personagem decide retornar a sua casa, a sua viagem é observada como uma atitude suspeita e até criminosa. Nesse sentido, parece haver uma marcação pré-estabelecida de quem merece mais segura e quem merece menos segurança, uma hierarquização da proteção policial, e das pessoas que merecem ser protegidas.
Todos os rios correm para o mar
“Meu corpo todo gelou, parecia que tava feito. Era minha vez. Minha coroa ia ficar sem filho nenhum, sozinha naquela casa. Mentalizei Seu Tranca Rua que protege minha avó, depois o Jesus das minhas tias. Eu não sei como conseguia correr, menó, papo reto, meu corpo todo parecia que tava travado, eu tava todo duro, tá ligado? Geral na rua me olhando. Virei a cara pra ver se ainda tava na mira do verme, mas ele já tinha dado as costas pra continuar revistando os menó. Passei batido!” (MARTINS, G. Último parágrafo: Reprodução)
No último trecho do capítulo, temos é a fuga do personagem daquela parada policial. Talvez julgássemos com mais ênfase a atitude dele, caso não estivéssemos observando a situação que o precede ou mesmo não tendo a menor noção da realidade em que se passa em sua cabeça. Alguns dos pensamentos que dão razão a sua fuga são: a morte de seu irmão, e da impossibilidade de imaginar a mãe sozinha em casa sem um filho. Nesse momento, de grande dúvida ((de fugir ou ficar para (talvez) morrer)), as aflições tomam conta dos pensamentos dele, e sua morte parece representar também a morte de sua família. Sendo assim, há um retorno a um lugar primeiro, onde tudo se forma ou ganha forma. Esse lugar é o lugar das ideias (a mente), da família e dos deuses. É o retorno do autor ao seu próprio berço, e não podendo reunir a força de sua família para sobressair-se da enrascada, resta-lhe o apelo aos deuses, que antagônicos, levam a um só lugar, naquele momento eles representam mais que a fé, mas a possibilidade de voltar para casa com vida.
Sugestões de Leitura
Artigo sobre o conto
BATISTA, P. R. S. B. A Imagem e o Som nos Corpos Mudos. São Paulo: Academia.edu, dezembro de 2019.
Rolézim (texto completo) – Disponível na Revista Piauí
O Sol na Cabeça (livro à venda)