Paulo José Pereira, 41 anos, vigia noturno, reside na Vila Império, na periferia de São Paulo. Lucas Conceição de Araújo, 18 anos, mecânico, mora na favela Cidade de Deus, em Manaus. Os dois são ciclistas e utilizam a bicicleta pelo menos cinco dias por semana para irem até o seu trabalho, levando cerca de 30 minutos para o trajeto. Ambos referem que ganham em torno de um salário mínimo, que moram em regiões com alta concentração de pessoas e que preferem a bicicleta por ser um meio mais econômico, saudável e rápido de locomoção.
Pelo uso frequente do veículo, eles reclamam da falta de estrutura adequada que priorize esse modelo de mobilidade urbana em seus bairros. “Em São Paulo, eles fazem ciclofaixas só nos centros, da periferia, eles esquecem um pouco”, comenta Paulo. “Aqui em Manaus só fazem ciclofaixa onde tem ponto turístico, eles não pensam dentro do bairro, e tem muita gente lá na minha favela que anda de bicicleta”, complementa Lucas.
De acordo com Rafael Henrique de Moraes Pereira, doutor em geografia de transporte e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), além dos benefícios para saúde pública e sustentabilidade da cidade, uma grande vantagem da implementação de infraestrutura para ciclista em regiões de baixa renda seria tornar essa modalidade mais inclusiva, já que possivelmente existe uma demanda reprimida de pessoas que não se locomovem de bicicleta por medo de se acidentar e de pessoas que deixam de sair de casa por não terem dinheiro para pagar o transporte público.
No entanto, para ele, quando falamos sobre implantação de infraestrutura cicloviária em áreas de grande concentração, encontramos contrastes. Isso porque, segundo ele, entre as pessoas de baixa renda, de áreas mais populosas, o uso da bicicleta é mais intenso, e existe uma maior dependência desse meio ativo de transporte, mas em contrapartida são locais onde existe menos oferta das faixas e vias. “Fica evidente que essa infraestrutura está muito mais concentrada nos bairros de classe média e classe alta, justamente onde reside a população que menos usa”, comenta.
A realidade de nossos entrevistados e o comentário do especialista vão de encontro com dados do People Near Bike(PNB) de 2019, indicador percentual de pessoas que vivem próximas da infraestrutura cicloviária. Esse levantamento feito pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento em parceria com a União dos Ciclistas do Brasil, mostrou que 4 em cada 5 pessoas moram distante das vias destinadas a bicicletas nas capitais brasileiras. Apenas 13% da população com renda abaixo de um salário mínimo mora próximo a essa estrutura, enquanto 30% dos moradores com renda acima de 3 salários mínimos estão a 300 metros de uma rota para ciclistas.
Segundo a PNB, demonstrados na imagem 1, algumas cidades possuem índices mais altos de pessoas que moram próximas a ciclofaixas, como Fortaleza (36%), enquanto algumas não chegam a 1%, como é o caso de Porto Velho e Macapá. Com relação às cidades de nossos entrevistados, São Paulo aparece com 19% e Manaus 1% (imagem 2), municípios esses que também apresentam maior quantidade de aglomerados subnormais (favelas) e maior percentual de domicílios em aglomerados, respectivamente, segundo dados preliminares do censo 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Para Rafael, as políticas públicas nacional e das prefeituras incluem a preocupação com os ciclistas, a grande questão é que os discursos dos gestores não coincidem com a prática. “O volume de investimentos feitos para melhorar as condições de transporte a pé e de bicicleta ficam muito abaixo do desejado, e ainda são extremamente desiguais no território, então existe uma grande iniquidade na distribuição dessas investiduras”, conclui.
Infraestrutura cicloviária e transporte ativo para todos
Lucas, que já foi atropelado por um ônibus quando andava de bicicleta, acredita que se houvesse ciclofaixa ou ciclovia na sua região, ajudaria na questão da segurança e respeito das pessoas ao circular na favela, pois o local tem grande movimentação de ônibus e carros. Já Paulo, acredita que no local onde mora tem uma estrutura que inviabiliza essa implantação. Ele prefere que sejam implementadas nas avenidas de grande circulação, para não disputar espaço com carros em alta velocidade.
De acordo com Rafael, especialista em mobilidade urbana são poucas as regiões onde não é possível construir ciclovia e ciclofaixa, mas um projeto desse exige estudos técnicos no local, tendo em vista que em alguns trechos dentro da comunidade, a rua tende a ser estreita, as casas muito próximas, e morros com muita inclinação onde uma faixa ou via para bike poderia produzir acidentes de pedestres e ciclistas. Entretanto para as grandes e principais ruas e avenidas nada justificaria essa não implementação, afirma ele.
Com relação a melhorias no bairro, tanto Lucas e Paulo concordam que são elementos essenciais para melhorar a mobilidade, que já podem ser feitas previamente antes mesmo da implantação de ciclofaixas. “Os trechos não são iluminados, tem esse risco também, ruas escuras, buracos, é difícil a gente ver”, aponta Lucas. “Além das calçadas serem estreitas, elas são muito mal conservadas, tem muito buraco, as ruas são péssimas”, confirma Paulo.
O geógrafo Rafael, aponta que melhorias na infraestrutura de calçadas e ruas são as soluções mais imediatas para acesso aos ciclistas e pedestres. A implantação das ciclofaixas e ciclovias são o segundo ponto importante, mas nada impede que ambas as estratégias ocorram concomitantemente, o que seria o ideal para viabilizar a locomoção por bicicleta e a pé, o que ele chama de transporte ativo.
Rafael esclarece também que em locais onde não tem espaço para construir ciclovia, as prefeituras poderiam diminuir o espaço dos carros, como já é feito em outros países. “Digamos que você tenha três faixas de ônibus com três metros e meio cada, se você tira meio metro de cada uma, você já tem mais um metro e meio para fazer uma ciclovia”, explica.
Ele acrescenta ainda que existe uma estratégia imediata e de custo zero, pouco abordada, mas com grande impacto na melhoria da condição de mobilidade para ciclistas. Trata-se da política de redução de velocidade dos carros em algumas regiões, por tornar o ambiente mais seguro para circulação das pessoas.
Paulo e Lucas sentem que falta iniciativa popular para exigir dos políticos melhorias nesse sentido, mas não encontram representantes em seus bairros, como vereadores para fazer valer essas reivindicações.
Para Rafael, a pressão aos órgãos públicos talvez seja o caminho mais efetivo e legítimo democraticamente para a transformação da cidade e melhoria desse tipo de acesso. “Eu acho extremamente salutar esse tipo de iniciativa, de a população se apoderar do seu direito à cidade, de fazer a gestão dos seus bairros e de cobrar dos seus representantes, que essas infraestruturas sejam construídas,cumprindo as promessas de campanha”.
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