23 de julho de 1993. Era inverno, pior época para se viver nas ruas – mesmo no Rio de Janeiro, onde o clima é sempre mais ameno. Mas a frieza daquela data estava longe de ser apenas uma questão climática. Naquela noite em que cerca de crianças e adolescentes tentavam descansar e se aquecer em frente a uma das mais imponentes igrejas da cidade, oito deles jamais veriam o sol nascer de novo.
A Chacina da Candelária é uma das mais tristes páginas da história do Brasil. Oito meninos, com idades entre 11 e 19 anos, foram assassinados a tiros no coração financeiro da cidade. Dezenas ficaram feridos. A tragédia foi motivada pela detenção de um dos adolescentes do grupo de cerca de 50 jovens que perambulava pelo Centro do Rio, levado à delegacia por consumir cola de sapateiro, o que não era ilegal. A animosidade crescente entre o grupo e policiais da área acabou em uma confusão, quando dois deles atiraram uma pedra na viatura, ferindo levemente o soldado Marcus Borges.
A sequência dos eventos envolve outros dois PMs, Marcos Aurélio Dias Alcântara e Nelson Oliveira dos Santos Cunha, e o ex-PM Maurício da Conceição, que era membro de um grupo de extermínio. Bastou um segundo até que um Chevette parasse em frente à igreja e todos aqueles destinos fossem traçados. Negligenciados pelo Estado, açoitados pelas ruas, todos tiveram suas trajetórias marcadas por aquela noite de horror.
Além de matar seis garotos no local, os assassinos ainda obrigaram três outros adolescentes a entrarem em um carro, de onde dois nunca mais sairiam vivos. Wagner de Oliveira, que atirou pedras no carro da polícia, era um deles e sobreviveu por um milagre, mesmo depois de uma segunda tentativa de homicídio no ano seguinte à chacina. Além de Wagner, outro sobrevivente que carregou na pele as cicatrizes da chacina foi Sandro Barbosa do Nascimento, protagonista de outro episódio de violência que o Rio de Janeiro nunca mais esqueceu: o sequestro do ônibus 174, no qual ele e a professora e moradora da Rocinha Geisa Firmo Gonçalves, acabaram mortos.
Segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, cerca de 10.182 pessoas na faixa etária de 15 a 24 anos foram assassinadas no Brasil em 1993. A Chacina da Candelária foi a primeira de uma sequência de três que aconteceram em pouco mais de um ano na cidade, vitimando sempre inocentes invisibilizado pela vulnerabilidade social e sempre tendo como autores aqueles que deveriam servir e proteger: policiais militares. A Chacina de Vigário Geral, em 29 de agosto do mesmo ano, acabou na morte de 21 pessoas. Um ano e três dias depois do episódio da Candelária, 11 famílias choraram o assassinato de jovens da Favela de Acari por um grupo de extermínio.
24 anos depois dessa sequência trágica de 40 mortes, cerca de 23 mil jovens negros são assassinados anualmente no Brasil. Ou seja, mais de 60 deles têm suas vidas interrompidas precocemente todos os dias no país. Investimentos em educação, políticas para redução da miséria, infraestrutura nas favelas: nada disso foi capaz de aplacar a sede de sangue de quem tem quem uma arma na mão. O racismo é o xis da questão que leva muitas dessas pessoas ao triste fim que todos já conhecemos.
Nenhum benefício à população será suficiente se não formos capazes de nos enxergar como irmãos. Enquanto a sociedade ainda olhar para homens e mulheres negros como inferiores, todo o tratamento que lhes vai restar é o ferro e o fogo, herança direta dos tempos da escravidão. É preciso lutar por um país que respeite seu povo e que não passe incólume pelo fato de vivermos diariamente cerca de oito chacinas como aquela de 23 de julho de 1993.
As noites e o sono tranquilo do futuro de toda uma nação dependem disso.