por Adriana Facina (antropóloga, professora da UFF)
Quantos Morros Já Subi
Composição: Mario Sergio/Arlindo Cruz/ Pedrinho da Flor
Quantos morros já subi desci sem ver
O que falam por aí me faz tremer
Essa gente vive assim sem reclamar
Lá ninguém é tão ruim, lá também se sabe amar
Todo mundo é irmão Todo mundo é irmão, todo mundo é companheiro
lá no morro da Formiga, do Borel e Salgueiro
Lá tem samba pé, no chão, poesia verdadeira
Lá no morro da Serrinha, lá no morro de Mangueira Quantos morros… Essa gente vive em paz, essa gente faz o bem
Seja no Pau da Bandeira, seja na Vila Vintém
Esse povo que a cidade chama de fora da lei
Vive com dignidade sem levar vida de rei. Eu já vi muita alegria, muita gente a sorrir
No morro do Juramento, Pavãozinho e Tuiuti
Eu já vi felicidade muita gente ser feliz
No alto do Andaraí e no morro da Matriz Essa gente vive em paz, essa gente faz o bem
Seja no Pau da Bandeira, seja na Vila Vintém
Esse povo que a cidade chama de fora da lei
Vive com dignidade sem levar vida de rei. Subi o morro que a sociedade não quer enxergar como eu enxerguei
Chacrinha, Turano, Rocinha e outros lugares que eu não cantei
No morro que eu pude encontrar amizade que em outros lugares que não encontrei
Vive com dignidade sem levar vida de rei
Recentemente, vi um filme que achei genial. Olhar estrangeiro é um documentário dirigido por Lucia Murat e foi lançado em 2006. O argumento veio da pesquisa de um professor do curso de Cinema da UFF, Tunico Amancio, que pesquisou as representações do Brasil em filmes realizados por estrangeiros e publicou o livro O Brasil dos gringos: imagens no cinema (Intertexto, Niterói, 2000) sobre o assunto. Essas representações são fortemente estereotipadas e deturpam escancaradamente a realidade. Nesses filmes, mulheres andam nuas ou de topless pelas praias, macacos convivem com as pessoas na cidade, há selva amazônica no Rio de Janeiro, nossa língua materna é o espanhol, nossas vidas são conduzidas a partir de rituais religiosos exóticos que reúnem candomblé, pajelança e sabe-se lá o que. Os homens são malandros, as mulheres são putas. Enfim, somos todos exóticos, sensuais e violentos selvagens.
Em Olhar Estrangeiro, Lucia Murat entrevista os realizadores desses filmes, questionando-os sobre como construíram essas imagens sobre o Brasil. Surpreendentemente, alguns deles nunca tinham vindo ao país ou apenas passaram por aqui brevemente. Ou seja, desconheciam a realidade sobre a qual discursavam em seus filmes.
Numa das entrevistas, a diretora diz a um realizador que no Rio não tem selva e ele responde que aquilo era uma invenção legítima. Quando Murat indaga como seria se se fizesse o mesmo com Nova York, o camarada faz uma cara de espanto, claramente indicando que o caso aí seria diferente! A gente sente uma revolta e percebe que a indignação também está presente durante todo o filme. Logo no início, a diretora finca uma bandeira verde-amarela como que demarcando o território da praia, largamente explorado nesses filmes, como coisa nossa.
O mais grave é que a maioria das pessoas “comuns” que são entrevistadas, de diversos países, repete os clichês propagados nessas obras, demonstrando o seu poder dessas em construir subjetividades através desse “olhar estrangeiro” que exotiza e inferioriza o outro, ao mesmo tempo em que lhe devota profundo desinteresse humano.
Gostei muito do filme, mas logo me lembrei que a produção seguinte da Lucia Murat foi o Maré, nossa história de amor, de 2007. Todos os moradores da Maré que conheço não gostaram desse filme, não se sentiram representados por ele, consideram-no ridículo e estigmatizante. E aí pensei o quanto seria interessante um filme como Olhar Estrangeiro voltado para problematizar os chamados “favela movies”. Com raras exceções, como é o caso deUma onda no ar, de Hevelcio Ratton, de 2002, a produção cinematográfica brasileira recente que toca no assunto favela o faz com um olhar estrangeiro. A “violência” é sempre o centro, crianças muito pequenas aparecem com armas na mão como se isso fosse algo corriqueiro na maioria das favelas, o ambiente favelado é uma ameaça à vida dos que vêm de fora. Coloco “violência” entre aspas porque a violência que a indústria do entretenimento tanto gosta e explora comercialmente é apenas um tipo entre tantas outras formas de violência que permanecem invisíveis. Educação de má qualidade, saúde desmatelada, ausência de saneamento básico, moradias precárias, desrespeito aos direitos fundamentais de cidadania são violências invisíveis, que não incomodam tanto a “boa sociedade” e, portanto, não rendem tantos filmes. E, o que é pior, esses filmes invisibilizam outras formas de sociabilidade, não-violentas, que são parte do cotidiano das favelas. O que dizia Milton Santos para as ciências sociais pode bem servir para a nossa cinematografia: queremos ver o dia em que os estudos sobre a “violência” dos de baixo cedam lugar aos estudos sobre as redes de solidariedades entre os pobres, sobre suas sociabilidades, suas formas de lazer e de construir o mundo.
Qual o sentido de reforçar estigmas? A quem isso interessa? No bem intencionado filme Meninas, de Sandra Werneck, por exemplo, vemos histórias de adolescentes faveladas que engravidam. Por que separá-las do asfalto? Por que não mostrar a mesma realidade entre moças de classe média que também engravidam adolescentes? A impressão que temos é que se trata de algo específico da favela, o que não corresponde aos dados do Ministério da Saúde, que apontam para o problema da gravidez precoce como algo generalizado em nossa sociedade. Nos extras, a diretora chega a dizer que aquelas meninas vêm de famílias desestruturadas, que não têm exemplos familiares para seguir. No entanto, o que vemos nas telas são famílias, sobretudo as mães, mas pais também, organizando, dentro de suas possibilidades, o acolhimento da jovem mãe e seu bebê. Talvez, fossem as meninas de camadas médias, ao invés de “famílias desestruturadas”, utilizaríamos o termo “novos arranjos familiares”.
Não estou querendo dizer que os problemas não existem, mas sim que a maneira pela qual os retratamos pode contribuir não para a sua superação, mas sim para a sua perpetuação. O filósofo húngaro Georg Lukács criticava o naturalismo na literatura por mostra uma realidade estática, um estado de coisas sem processo e, portanto, imutável. Nessas narrativas sobre as favelas encontramos esse naturalismo que, a pretexto de retratar a realidade nua e crua, mostra um mundo sem saída.
O certo é que quanto mais os pobres forem estigmatizados, pior será a nossa sociedade. Porque a verdade é que, no mundo em que vivemos, haverá cada vez mais pobres, e temos de pensar em alternativas para a classe trabalhadora empobrecida que não seja o encarceramento em massa ou o extermínio, sob pena de nos desumanizarmos todos a cada dia mais.
Refletindo sobre todas essas coisas, eu me peguei desgostando de uma música que, quando ouvi as primeiras vezes, tinha achado muito bonita. Chama-se Nomes de favelas, de Paulo César Pinheiro
. Sua letra diz assim:
O galo já não canta mais no Cantagalo
A água já não corre mais na Cachoeirinha
Menino não pega mais manga na Mangueira
E agora que cidade grande é a Rocinha! Ninguém faz mais jura de amor no Juramento
Ninguém vai-se embora do Morro do Adeus
Prazer se acabou lá no Morro dos Prazeres
E a vida é um inferno na Cidade de Deus Não sou do tempo das armas
Por isso ainda prefiro
Ouvir um verso de samba
Do que escutar som de tiro Pela poesia dos nomes de favela
A vida por lá já foi mais bela
Já foi bem melhor de se morar
Mas hoje essa mesma poesia pede ajuda
Ou lá na favela a vida muda
Ou todos os nomes vão mudar
Acontece que o galo ainda canta no Cantagalo, água não corre mais quase que na cidade toda, menino não pega mais manga praticamente em canto nenhum do Rio e a Rocinha é cidade grande como a cidade da qual ela faz parte (ainda que na Rocinha todo mundo se conheça e os vizinhos, diferentemente do meu prédio, ainda se cumprimentem). Ninguém faz mais juras de amor no Juramento? Como assim? Que tipo de gente mora lá então? No Morro dos Prazeres não há mais prazeres? Seus moradores discordam! No Morro do Adeus, chegam e saem pessoas, como em qualquer outro lugar. E a vida na Cidade de Deus não é só inferno, pois o povo de lá também tem seus momentos de poesia.
E a vida tem de mudar só na favela ou é na cidade inteira? E quais mudanças queremos? São as do tipo “choque de ordem”, ocupação militar por unidades pacificadoras da polícia ou as que sejam construídas de modo democrático e cidadão, com o protagonismo dos próprios moradores de favelas?
Acho que já passou da hora do povo favelado produzir filmes.
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