A repercussão, 23 anos depois, de chacinas na Nova Brasília e a matéria “Moradores se mudam de favelas conflagradas, em êxodo que cresce no Rio”, publicada em 15 de maio no Jornal O Globo me levaram de volta para a minha infância, passada a apenas algumas quadras do Morro do Adeus, Zona Norte do Rio.
Na primeira metade dos anos 90, eu vivia meus primeiros anos escolares. Aprendia a ler não apenas as letrinhas na cartilha do antigo C.A., mas também a fazer minha própria leitura de um mundo que deixava de ser cor de rosa como o meu quarto e ganhava tintas vermelho-sangue e camuflagem militar. As disputas de facções pelo controle do Morro do Adeus me trouxeram as piores lembranças da minha infância, com as traçantes que eu via da janela do meu apartamento do terceiro andar, ao lado da linha de trem que corta o subúrbio.
Também foi nessa época em que aprendi a ter pavor de polícia, ainda que jamais tenha cometido ilícitos. É impossível apagar da memória a cena do militar apontando um fuzil do alto de um helicóptero para uma mulher e uma criança indefesas que, no alto de uma passarela, tentavam voltar pra casa depois de mais um dia de escolas fechadas. São lembranças que não estão guardadas em retratos, mas num baú hermético à prova de qualquer sinistro – memórias que nos forjam enquanto seres humanos que não aceitam injustiças.
Eu me lembro até hoje do ódio que existia no rosto do policial que inadvertidamente fez isso comigo e com minha mãe no meio da guerra entre Adeus e Alemão em 1994. Eu me lembro do toque de recolher. Eu me lembro das balas traçantes que enchiam as noites de pavor. Eu me lembro das pessoas querendo desesperadamente uma vida melhor, mas sem ter pra onde ir, com medo de sair de casa, cansadas de ver parentes e amigos mortos.
Isso tudo eu via do asfalto, de uma vida privilegiada de criança de subúrbio, com família de classe média baixa, mas que tinha acesso a brinquedos, carro e escola privada. A condenação do Brasil na OEA pela negligência na apuração de duas chacinas no Alemão podem exemplificar o que acontecia na favela que eu via da varanda de casa ou visitava nos fins de semana, onde morava minha melhor amiga – cuja família já tinha se mudado do Morro da Formiga por medo da violência.
As duas notícias que me chamaram atenção durante a semana soam quase como um espelho anacrônico uma da outra. O êxodo voltou a ser uma rotina nas favelas, como foi quase três décadas atrás. O desespero de muitos moradores os está deixando doentes. São inúmeros os relatos de casos de depressão, ansiedade e estresse pós-traumático entre quem vive nas favelas. O Brasil matou mais gente que a Síria no último ano. Como é possível conviver de maneira tranquila com essa realidade batendo à sua porta todos os dias? Nem o pior dos sádicos sobrevive a tamanha pressão.
No meio da guerra, o morador sempre acaba no meio e ninguém se importa com ele, nem de um lado, nem de outro. Com a vida como está por aqui, é pouco provável que as gerações futuras guardem memórias menos doídas que as nossas.