Os efeitos colaterais da presença das Forças Armadas nas favelas

Créditos: Rômulo Gomes

Na última terça-feira, 26, dormi já sabendo qual seria a rotina do dia seguinte. Tínhamos que enterrar nossos mortos – quantos mais morriam, em tantos lugares, nós não sabíamos. Minha irmã havia acabado de perder o pai, mas antes fez questão de ir para a escola realizar uma prova importante. Mal consegui abrir os olhos e o celular já tocava absurdamente.

Dormimos e acordamos em alerta.

6h da manhã:
“Cuidado, sua rua está tomada de policiais”, “É melhor vocês não irem ao enterro”, “Será que vai ter aula?”, “Revistaram a mochila das crianças”, “Me revistaram quando cheguei no portão da escola”, “Adiaram a prova – mas a gente se preparou o ano todo”: as mensagens chegavam o tempo todo.

O WhatsApp não parou e minha cabeça girava. Como se não bastasse a pressão diária e a vulnerabilidade emocional de perder alguém, ainda tínhamos o confronto diário.

Alguns adolescentes lidavam bem melhor com a situação do que eu. Entre piadas e tentando manter a rotina nas ruas, ainda conseguiam compartilhar informações como se fosse algo normal. Durante esse tempo, os soldados vasculharam o quintal e abriram o vidro da minha porta para verificar se havia algo suspeito em casa.

 

Créditos: Rômulo Gomes
Créditos: Rômulo Gomes

 

Os efeitos colaterais de uma guerra de interesses são muitos, mas um deles eu senti na pele. Teto preto, gelei. A pressão subiu e eu apaguei.

Uma amiga que estava contando os dias para o casamento, que acontece nesse sábado, veio correndo pra me socorrer. A mobilização dentro dos territórios, à margem da sociedade, é o que tenta manter tudo funcionando. Sempre!

Meu corpo reagia ao mal-estar e os soldados ainda revistavam o terreno. Os banheiros químicos e mais carros chegavam, lotados de homens camuflados. No celular, as fotos vinham de todos os lados e tentávamos entender qual a finalidade do esquema armado.

 

Créditos: Rômulo Gomes
Créditos: Rômulo Gomes

 

Para além da ocupação do meu bairro, pude ver essa loucura de dois ângulos.

1 – Do Alto da Boa Vista, enquanto supostamente bandidos saíam da Rocinha para se esconder na mata alguns dias antes. Ao tentar descer, a sensação era de que o Exército estava ali cordialmente para assegurar que os moradores estivessem bem. Éramos três mulheres negras dentro de um carro que não era popular e por um momento, pensei: “F****!”. Diferente do modo como estou acostumada, os jovens da favela a serviço do Exército nos receberam com sorrisos, tentando dar a impressão de que tudo estava bem tranquilo. Até certo ponto, estava mesmo, afinal, a elite tem de ser protegida.

2 – De Duque de Caxias / Pantanal, na quarta-feira. Tudo é muito recente. Nunca imaginaríamos que nosso bairro tranquilo viraria um cenário tomado por homens camuflados. A sensação com certeza não foi de segurança, mas de medo e impotência.

– Será que vão ficar até à noite?

– Por que você não dorme aqui em casa?

– Vocês não podem ficar aí.

– Vocês precisam se mudar.

Eu ri! Poderia ser engraçado, mas o trágico é que os efeitos colaterais desse absurdo atingem quem não tem a menor chance de escapar. Presos, mesmo não cometendo nenhum crime.

O problema não é as Forças Armadas, mas o que a falta de políticas públicas pensadas nesses territórios fazem com ele. É até ingênuo acreditarmos que esse cenário montado resolverá ao menos 1% de todo o caos instalado, em que as minorias estão sendo massacradas constantemente.

 

Créditos: Rômulo Gomes
Créditos: Rômulo Gomes

 

A gente conseguiu chegar no cemitério, a prova vai ser remarcada e, além dos patrões terem descontado o atraso no pagamento dos funcionários, nosso emocional nunca mais vai ser o mesmo. Dois dias após o ocorrido, as escolas nessas zonas de confronto precisaram refazer todo o cronograma anual de aula para driblar o impacto emocional de alunos e profissionais e não perderem o ano letivo, que já segue precário no Estado.

Mas voltamos à nossa rotina.
Não, a rotina nunca mais será a mesma. Embora as estatísticas levantadas por alguns veículos falem em uma média de 3.000 alunos sem aula, sabemos que esses números podem chegar a cinco vezes mais, se contabilizar as escolas públicas e particulares que ficaram fechadas no período.

Quanto aos alunos que perderam a prova? É bem provável que uma grande parcela já tenha desistido. Afinal de contas, vai levar muito tempo para que eles saiam dessa realidade fuzilada.

 

Créditos: Rômulo Gomes
Créditos: Rômulo Gomes