Na última terça-feira, 26, dormi já sabendo qual seria a rotina do dia seguinte. Tínhamos que enterrar nossos mortos – quantos mais morriam, em tantos lugares, nós não sabíamos. Minha irmã havia acabado de perder o pai, mas antes fez questão de ir para a escola realizar uma prova importante. Mal consegui abrir os olhos e o celular já tocava absurdamente.
Dormimos e acordamos em alerta.
6h da manhã:
“Cuidado, sua rua está tomada de policiais”, “É melhor vocês não irem ao enterro”, “Será que vai ter aula?”, “Revistaram a mochila das crianças”, “Me revistaram quando cheguei no portão da escola”, “Adiaram a prova – mas a gente se preparou o ano todo”: as mensagens chegavam o tempo todo.
O WhatsApp não parou e minha cabeça girava. Como se não bastasse a pressão diária e a vulnerabilidade emocional de perder alguém, ainda tínhamos o confronto diário.
Alguns adolescentes lidavam bem melhor com a situação do que eu. Entre piadas e tentando manter a rotina nas ruas, ainda conseguiam compartilhar informações como se fosse algo normal. Durante esse tempo, os soldados vasculharam o quintal e abriram o vidro da minha porta para verificar se havia algo suspeito em casa.
Os efeitos colaterais de uma guerra de interesses são muitos, mas um deles eu senti na pele. Teto preto, gelei. A pressão subiu e eu apaguei.
Uma amiga que estava contando os dias para o casamento, que acontece nesse sábado, veio correndo pra me socorrer. A mobilização dentro dos territórios, à margem da sociedade, é o que tenta manter tudo funcionando. Sempre!
Meu corpo reagia ao mal-estar e os soldados ainda revistavam o terreno. Os banheiros químicos e mais carros chegavam, lotados de homens camuflados. No celular, as fotos vinham de todos os lados e tentávamos entender qual a finalidade do esquema armado.
Para além da ocupação do meu bairro, pude ver essa loucura de dois ângulos.
1 – Do Alto da Boa Vista, enquanto supostamente bandidos saíam da Rocinha para se esconder na mata alguns dias antes. Ao tentar descer, a sensação era de que o Exército estava ali cordialmente para assegurar que os moradores estivessem bem. Éramos três mulheres negras dentro de um carro que não era popular e por um momento, pensei: “F****!”. Diferente do modo como estou acostumada, os jovens da favela a serviço do Exército nos receberam com sorrisos, tentando dar a impressão de que tudo estava bem tranquilo. Até certo ponto, estava mesmo, afinal, a elite tem de ser protegida.
2 – De Duque de Caxias / Pantanal, na quarta-feira. Tudo é muito recente. Nunca imaginaríamos que nosso bairro tranquilo viraria um cenário tomado por homens camuflados. A sensação com certeza não foi de segurança, mas de medo e impotência.
– Será que vão ficar até à noite?
– Por que você não dorme aqui em casa?
– Vocês não podem ficar aí.
– Vocês precisam se mudar.
Eu ri! Poderia ser engraçado, mas o trágico é que os efeitos colaterais desse absurdo atingem quem não tem a menor chance de escapar. Presos, mesmo não cometendo nenhum crime.
O problema não é as Forças Armadas, mas o que a falta de políticas públicas pensadas nesses territórios fazem com ele. É até ingênuo acreditarmos que esse cenário montado resolverá ao menos 1% de todo o caos instalado, em que as minorias estão sendo massacradas constantemente.
A gente conseguiu chegar no cemitério, a prova vai ser remarcada e, além dos patrões terem descontado o atraso no pagamento dos funcionários, nosso emocional nunca mais vai ser o mesmo. Dois dias após o ocorrido, as escolas nessas zonas de confronto precisaram refazer todo o cronograma anual de aula para driblar o impacto emocional de alunos e profissionais e não perderem o ano letivo, que já segue precário no Estado.
Mas voltamos à nossa rotina.
Não, a rotina nunca mais será a mesma. Embora as estatísticas levantadas por alguns veículos falem em uma média de 3.000 alunos sem aula, sabemos que esses números podem chegar a cinco vezes mais, se contabilizar as escolas públicas e particulares que ficaram fechadas no período.
Quanto aos alunos que perderam a prova? É bem provável que uma grande parcela já tenha desistido. Afinal de contas, vai levar muito tempo para que eles saiam dessa realidade fuzilada.