Entrevista de Cecília Olliveira com o Davi Marcos, que fala sobre o trabalho “Os Humilhados serão exaltados”, que consiste em fotografar os escombros das remoções de moradores de Manguinhos e Jacarezinho.

Remoção: Ação ou efeito de remover ou ser removido. O conceito no dicionário é claro. Tão claro como o cotidiano da vida de milhares de cariocas desde que o Rio de Janeiro viveu a abolição e os negros tomaram as ruas da então capital federal da República, espalhando aquilo que “ninguém” podia ver: a pobreza que ameaçava a ordem e a beleza da aspirante a Paris tropical.

Uma das primeiras remoções de que se tem notícia foi a que deu origem ao Morro da Favela, hoje conhecido como Morro da Providência e que até hoje sobre com remoções, como você pode ver aqui. Os negros alforriados que ocuparam lugares nos arredores das cidades, formando os cortiços, foram desabrigados de uma forma ainda comum: polícia chega, dá a ordem para sair, prende os que resistem, bota o lugar a abaixo. A história foi recentemente ilustrada numa cena da novela de João Emanuel Carneiro, feita com a ajuda de historiadores, Lado a Lado (confira a cena aqui). Assim, o cortiço Cabeça de porco, posto abaixo em 1893 pelo prefeito Barata Ribeiro deu origem a primeira favela do Rio.

Logo os negros ganharam vizinhos. Os soldados que defenderam a República na Guerra de Canudos, na Bahia, também se instalaram ali, já que que não obtiveram sucesso na cobrança.

Mais de 100 anos se passaram, o ação governamental ganhou ares de “progresso”, mas as práticas são as mesmas. Em 1800 casas que eram marcadas com a sigla PR (Príncipe Regente), hoje são marcadas com SHM (Secretaria Municipal de Habitação). Ambas residências estavam no lugar “errado”, por onde passaria o “progresso”, precisavam e ainda precisam, não estar ali e servir ao interesse da força dominante. Outrora Família Real, hoje especulação imobiliária. Em comum, o desrespeito, a imposição de decisões estatais, a destruição de histórias e vidas. É isso que o fotógrafo e videomaker Davi Marcos, de 34 anos, documenta.

Filho de um mineiro e uma carioca, ambos moradores de favelas, hoje ele mora na favela Roquete Pinto, no Complexo da Maré. Seu pai morava na Baixa do Sapateiro, no Complexo da Maré e sua mãe no Morro do Andaraí, Morro dos Macacos, Morro do Timbau e Bonsucesso. Quando casaram, foram morar na COHAB de Ramos, onde Davi nasceu. Ele é pai de Marcos Eduardo, de 10 anos, a quem chama de “motivo para continuar meu sonho de artista”.

Conheça a história de Davi Marcos, contada por ele mesmo:

“Tenho um filho de 9 anos, Marcos Eduardo, que está sempre me motivando a continuar meu sonho de artista. Minha mãe tinha um apartamento que herdara de meu pai, esse que foram morar quando casaram. Porém ela deveria repartir com uma das irmãs de meu pai, pois constava na documentação o nome dela.

Sempre houve briga pelo apartamento, minha mãe veio a falecer, dentro do mesmo, e eu decidi acabar com aquele karma. Vendi o apartamento por um valor muito abaixo ao de mercado, dei a parte de minha tia e fui em busca de uma nova moradia. Eu estava com muitas dívidas e desempregado, paguei o que devia e me mantive com o dinheiro que sobrou por um ano. Comprei ainda uma kitchenette na comunidade da Cobal, na “Faixa de Gaza” carioca.

Conheci mais a fundo o Complexo do Mandela e Manguinhos, em um período que não conseguia mais ficar no apartamento da COHAB de Ramos. Passei um tempo morando no Mandela 2, na casa de meu amigo Bruno, um tatuador muito famoso na localidade.

Antes disso, na verdade uns 9 anos antes, eu já havia morado em Manguinhos, numa casa de um outro amigo. Era a fase em que eu tinha uma banda Punk e a casa era frequentada por “roqueiros” de várias partes do subúrbio. Foi uma fase bem divertida. Andava de skate, estudava, trabalhava e cantava nessa banda, cujo nome era Abstinência.

Também tive outra relação com Manguinhos e Mandela. Fui instrutor de fotografia em um projeto da Secretaria de Cultura, Governo Federal e Observatório de Favelas que se chamava Memórias do PAC. Nele os alunos fariam registros das transformações que aconteceriam na localidade durante a execução do projeto, mas infelizmente não houve uma continuidade. Isso acabou me estimulando a fazer algum tipo de registro sobre o que estava acontecendo, mas tive que deixar de lado por um tempo, pois a necessidade maior era meu sustento e de meu filho. Cheguei ao ponto de vender meu equipamento de fotografia.

Passada esta fase ruim, retomei meu projeto pessoal e decidi que faria algo diferente do que nós, “os de dentro”, sempre fazíamos. Queria mostrar que o espaço físico também carrega emoções, afinal, quem construiu aquele espaço, em sua grande maioria, foram as próprias pessoas que moravam ali, logo eu via que sentimentos, memórias e impressões, de uma “comunidade” estavam “impregnados” em concreto, tijolos e madeira.

Numa das minhas “incursões” pelos escombros, vi uma frase muito emblemática no terceiro andar de uma casa, Os Humilhados Serão Exaltados, ficou ecoando em minha mente, com certa tristeza e revolta, sentia como se a energia, daquele momento e de quem escreveu aquilo, estivesse tocando minha alma. Como estou me direcionando aos escombros, praticamente não sou visto fotografando, mas uma vez vi um olhar de uma senhora e era como se dissesse, o que tá fazendo aí? Não tem nada. Eu sorri e continuei minha busca pelos vestígios.

A frase mais marcante não vi em parede. Ouvi de um vizinho que tem um comércio, ainda hoje em funcionamento, o Dentinho, que disse assim: “Davi, acabou tudo, quem viveu, viu e viveu, agora acabou, acabou a COBAL”. Ele me disse isso depois que comentei com ele que levaram as ferramentas de meu pai, uma cadeira de praia, um colchão inflável e as janelas, portas e canos de minha ex-casa.

Isso aconteceu após o esvaziamento da favela, já as pessoas iam recebendo o aluguel social e indo embora. Isso faz cerca de oito meses. Então começaram os furtos, já que as pessoas não conseguiam levar tudo de uma vez de suas casas. Assim perdi as ferramentas que meu usava quando vivo. Ele era marceneiro. Esse foi mais um motivo para que eu buscasse naqueles escombros as memórias que dificilmente serão mostradas de outra forma.

Enquanto tudo não for destruído por completo continuo esse trabalho. Espero que ele um dia se torne uma exposição. Isto que talvez concretize a exaltação que esperava quem escreveu a frase que tomou o meu projeto de mim e “resignificou” como uma ação da favela e não minha. Não sei explicar bem isso, mas é o que sinto. Não é mais meu e talvez nunca tenha sido. É de todos que em algum momento tiveram que tirar suas “raízes” e se transferirem para um outro lugar.

No nosso caso, onde as estruturas não têm o suor de quem mora, mas que, espero, tenha a estrutura básica que todos devem ter, com material de qualidade e um planejamento eficaz, não apenas uma simples remoção, na verdade nem sabemos onde serão construídos os nossos apartamentos, mas estamos, mesmo que espalhados, de alguma forma juntos nessa jornada.

 

anf

Foto de Davi Marcos

Fonte: http://decostasprocristo.blogspot.com.br/2013/04/os-humilhados-serao-exaltados-o-preco.html