Admito: hoje em dia, eu estou longe de ser o leitor que um dia fui. Acredito que este será um século de mais escrita e menos leitura. Mas, retomando o assunto da semana passada, o reencontro com tantos livros marcantes de minha vida me fizeram refletir sobre esta minha jornada como leitor.
Aos 19 anos, trabalhei em um estande da editora Vozes na Bienal do Livro, no Riocentro. Recebi o pagamento integral no último dia, a poucas horas de encerrar a Bienal. Percorri os estandes, todos em promoção, com descontos enormes para esvaziar o estoque antes da desmontagem. Gastei todo o meu dinheiro de 12 diárias em pouco mais de uma hora. Finalizei o dia me sentindo um projeto de erudito. Só na editora Vila Rica, de Minas, comprei toda a obra de Machado de Assis e de Lima Barreto (não era toda a obra, mas eram todos os romances e livros de contos) e ainda Guerra e Paz, de Tolstoi, e Dom Quixote, de Cervantes, que foi o primeiro livro com mais de 1.000 páginas que li. Montei também minha primeira prateleira de filosofia, em edições meio vagabundas da Ediouro: Nietzsche (Li Assim falava Zaratustra no meio da Floresta da Tijuca), Descartes, Santo Agostinho, Platão, Kant e Spinoza. Só essa compra me garantiu dois ou três anos de leitura.
Eu gostava e tinha orgulho das listas de livros lidos que eu fazia ao longo do ano. Eram 80, 90, 100 livros. Uma época, percebi que peças de teatro engordavam a lista facilmente porque eram leituras mais rápidas. Caí dentro de Nelson Rodrigues, Tennessee Williams, Arthur Azevedo, Arthur Miller e outros. Até Ibsen em francês eu comprei no sebo e li umas seis peças com dicionário na mão, já que o francês que aprendi no Pedro II não era tão suficiente.
Aquela febre, aquela euforia de leitura faz parte, acredito, de minha formação como artista. Foi parte de um circuito que envolvia esforço, descobertas, agonias do crescimento e tempo livre. Hoje, minhas leituras são mais fragmentadas. Já escrevi quatro peças de teatro, alguns contos, alguns artigos, muitos poemas e uma infinidade de aforismos que a rede social arranca de mim diariamente há cerca de cinco ou seis anos. Esse ser-leitor foi a pré-história do meu ser-escritor. Saqueei as estantes, roubei ideias, mixei estilos, virei uma colcha de todos estes retalhos.
Sempre amei os aforismos. Millôr Fernandes, Nietzsche, Nelson Rodrigues,
Gabriel Garcia Marques e Guimarães Rosa foram leituras que abriram novos portais na minha imaginação. Dostoiévski foi uma das leituras mais impactantes dos meus 20 anos. Devorei Os Irmãos Karamazov enquanto meu coeficiente de rendimento (CR) caía a niveis preocupantes na universidade.
Na poesia, meu favorito disparado era João Cabral de Melo Neto, mas também Drummond e Bandeira. Clarice Lispector, Virginia Woolf e Gertrude Stein foram o grelo duro da minha formação literária.
Nesta época, eu era também fissurado em Paulo Francis, que tinha uma coluna de página inteira no O Globo... Muita coisa que li neste período também eram indicações que ele dava na coluna: Gore Vidal, H. Mencken, Edmund Wilson, V. Naipal, Lukács e outros.
Até teoria da literatura me interessava. Northrop Frye, Kenneth Burke, Lionel Trilling… Nesta leva de livros, reencontrei o Teoria do Romance, do György Luckaks. Que livro apaixonante, uma teoria da literatura escrita com paixão! Fiquei relendo, encantado, este que é um dos meus livros mais sublinhados.
Aos 23, comecei a trabalhar na Livraria do Museu, localizada no Museu do Museu da República. Abria-se uma nova era de aquisição de livros, agora com descontos brutos. Foram três anos enchendo ainda mais as estantes de casa. A faculdade eu levava nas coxas. Meu tesão eram os livros lidos nas calmas horas das madrugadas.
Nunca mais roubei um livro. Deixo o trabalho para a nova geração. Tomara que roubem alguns meus e façam bom proveito. O ladrão de livros de hoje é o generoso fornecedor de insights do amanhã. Já roubei muitos livros, agora quero distribui-los e escrevê-los.
E você, amigo leitor? Anda lendo o que?