Eu sou o samba
A voz do morro sou eu mesmo sim senhor
Quero mostrar ao mundo que tenho valor
Eu sou o rei do terreiro
Eu sou o samba
Sou natural daqui do Rio de Janeiro
Sou eu quem levo a alegria
Pra milhões de corações brasileiros
Salve o samba, queremos samba
Quem está pedindo é a voz do povo de um país
Salve o samba, queremos samba
Essa melodia de um Brasil feliz
A Voz do Morro
Zé Keti
Quando Zé Keti compôs e gravou esta música no ano de 1952, talvez não imaginasse o quanto o som que vem dos morros iria ecoar tão alto, e a alegria do samba atrairia tantas vozes, até mesmo de pessoas vindas de outras partes do mundo. O sambista sequer poderia vislumbrar que esta voz iria transformar as favelas em pontos turísticos, atraindo principalmente turistas estrangeiros. E muitos destes não viriam apenas para fazer turismo nos morros, mas, também, para vivenciar a rotina das favelas e a preparação da mesma para o carnaval.
E este é o caso das 14 pessoas que formam o Grupo Kalimbao Meu Brasil, liderado pelo francês Fabrice Vellot, que veio ao Rio de Janeiro para fazer o tradicional turismo e também desfilar na Escola de Samba Império Serrano e no Bloco Carnavalesco Cometas do Bispo, do Morro do Turano, localizado entre os bairros da Tijuca e do Rio Comprido. E como todos os turistas que chegam à Cidade Maravilhosa, capital do Samba e do Carnaval nessa época do ano, vieram atraídos pelo ritmo, e, sendo assim, não se restringiram apenas em passear nos pontos turísticos tradicionais do Rio. O grupo hospedou-se próximo ao Morro para facilitar a ida aos ensaios do bloco.
Numa entrevista bem descontraída, Fabrice Vellot nos conta que chegou ao Brasil pela primeira vez em 1996 para aprender samba, pois conheceu o ritmo através da MPB e da Bossa Nova, e não tinha a menor ideia de quão amplo ele era, e foi aqui no Rio de Janeiro que descobriu outras variações, como o pagode e o samba de raíz. O francês, que tem um excelente entendimento de samba e carnaval, chega a cantarolar algumas músicas antigas de Vinícius de Morais e Tom Jobim, entre outros, e um samba de enredo antigo da Unidos da Tijuca, União da Ilha do Governador e outro da Imperatriz Leopoldinense. E demonstrando toda sua paixão pelo Samba, também fala um pouco da sua trajetória, que começou lá na França no ano de 1989, logo após conhecer a Bossa Nova no ano de 1978.
[…] “eu pensava que o samba era mais do povão, que não conhecia regras, João Gilberto, Bossa Nova, tudo isso …
Fabrice diz que foi aqui que descobriu que aquela variação de Samba, cantado todo certinho, bem engomadinho, surgira do povão, e o deixou mais encantado pelo ritmo, querendo aprender muito mais sobre. Chega a falar que este Samba do povão, que vem do morro, está no topo da pirâmide, pois é começo de tudo. E eu o pergunto se hoje, conhecendo mais o ritmo, o que ele prefere? Me diz sem hesitar, que prefere o Samba do povão e estar junto ao mesmo, pois, segundo suas palavras, é mais alegre e divertido.
No ano de 2002, em mais uma vinda ao Rio de Janeiro, adotou 4 irmãos que perderam os pais para violência. Os mesmos são da cidade de Belford Roxo e foram criados na França por Fabrice e sua primeira esposa, Anna Vellot. E para que o filho caçula, Leandro Vellot, tivesse um pouco mais de contato com sua cultura e seu idioma, trouxe o rapaz ao Brasil junto ao grupo. O hoje adolescente foi embora aos 3 anos de idade com os pais adotivos e ainda não havia retornado ainda ao seu país e cidade de origem.
Para o francês, a vinda do filho também seria uma oportunidade de entrar, conhecer e vivenciar um pouco a rotina de uma favela. O europeu relata que já esteve diversas vezes no Brasil, desfilou em algumas escolas de samba, como Acadêmicos do Grande Rio e Império Serrano, mas nunca havia entrado em “comunidade”.
“Cheguei aqui em 96, e em 2.000, e até 2019, ano passado, nunca tinha entrado em uma favela, esperei 24 anos, (…) era o que eu queria, é muito diferente” …
Quando pergunto o que ele achou e se ficou surpreso com o que viu, me responde que é tudo muito diferente do que é apresentado para eles lá na França, que ficou muito surpreso, assim como todos os outros membros do grupo ficaram também, surpresos e admirados. Fabrice Vellot diz que o Morro do Turano é a primeira favela que entram e por ele será a única, pois, nos fala que foi muito bem recebido pelos moradores, que foi uma experiência incrível e inesquecível.
[…] “acho que você não pode ter duas mães, três pais, (…) você vai lá, tem que entrar, sentar e conversar se quiser voltar, uma vez que tudo rola, você se sente bem, fica e aí volta, não dá pra ficar de uma favela aqui, outa ali”.
E ele me conta que dentre as experiências que teve no Turano foi conhecer um baile funk. Seu filho também gostaria muito de ir e confessa que ficava preocupado, devido as diversas histórias negativas que ouve sobre o evento. Fala que ficou muito surpreso mais uma vez, ao ver que nem de longe o baile e o que sempre ouviu falar, que é uma festa muito bonita, segundo suas palavras, e bastante animada e divertida. Uma experiência fantástica.
[…] “é como um mar e uma lagoa, o mar é a gente que sobe para ir nessa festa e a lagoa é a gente dá comunidade que desce da parte do alto e se junta à água que tem sal e a água doce, faz aquela mistura, e isso é genial” …
Percebo por sua forma de falar sobre sua ida ao baile funk pela primeira vez, que foi mais um mito desfeito, mais um pensamento negativo sobre rotina da favela desconstruído.
Os integrantes do grupo Kalimbao subiam o Morro do Turano para participar dos ensaios do bloco Cometas do Bispo, ajudar na organização da quadra, confecção das alegorias, etc. Eles também fizeram um “tour” pela favela para conhecer, frequentaram alguns bares, utilizavam alguns serviços, como o de barbearia. Demonstravam estar bem à vontade, como se estivessem em qualquer bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro.
Quis saber de Fabrice como surgiu esse desejo de desfilar no bloco Cometas do Bispo, se foi por já conhecer o Morro do Turano. Ele me conta que nunca tinha ouvido falar ainda nem em um e nem no outro, que no carnaval do ano passado conheceu o Presidente Marcelo Velasco em bar na Tijuca, próximo ao Turano, enquanto aguardava a passagem de uma banda de carnaval. Os dois conversaram sobre samba e o presidente Marcelo o convidou para desfilar no Cometas. O francês retornou ao seu país já planejando trazer algumas pessoas para desfilarem também.
Lá na França, fazendo pesquisas para saber mais sobre o Cometas, encontrou um texto de minha autoria, publicado em setembro de 2018 pela Agência de Notícias das Favelas – ANF, e pela Agência Pública em agosto de 2019 contando a história do surgimento da favela do Morro do Turano. Então, após ver as fotos feitas por Fabrício Mota, quis conhecer melhor o local, já que iria desfilar no principal bloco do morro. Conversou com os componentes do Grupo Kalimbao e os propôs virem também para o Rio de Janeiro viverem essa experiência.
Pergunto se todos já haviam desfilado em alguma escola ou bloco no carnaval do Rio? Fabrice Vellot responde que só ele já havia desfilado, que os outros estavam tendo essa experiência pela primeira vez, até mesmo sua esposa Patrícia Pourcel e seu filho Leandro Vellot. Quanto às dificuldade de comunicação por conta do idioma, o francês me conta que antes de virem pra cá, ensaiaram bastante o samba de enredo do bloco e memorizaram a letra. E que, por conta disso não estavam tendo dificuldades para ensaiar. Fala da grande experiência que ele e todos tiveram vivenciando a rotina do dia a dia bloco na preparação do carnaval, que não imaginavam como era feito tudo isso até chegar o dia do desfile.
Fabrice Vellot fala que pretende levar essa experiência para seu grupo, que lá na França é composto por 90 pessoas de três cidades, e que eles se apresentam com shows de Samba e Pagode. Também fazem desfile pelas ruas de Narbona, sua cidade natal. Segundo o francês, é o carnaval mais longo do mundo, pois dura 3 meses, vai do mês de setembro ao mês de dezembro. Pergunto se a cidade é a Bahia francesa. Ele sorri e me diz que acha que sim. Pergunto também se isso seria um carnaval fora de época, como o que existe aqui, ele me fala que não, pois esses são os meses de maior movimento na cidade e que, diferentemente daqui, janeiro e fevereiro são fracos para eventos.
Sobre voltar, fala que sim, pois foi uma experiência incrível para todos, e que estavam gratos pela recepção que tiveram no Morro do Turano. Demonstrando gratidão, fala que eles se tornaram conhecidos, que não havia um lugar por onde passassem que não fossem cumprimentados por um morador, que isso os deixava muito felizes. E no final da entrevista, sua esposa Patrícia entra na conversa é faz uma comparação do Turano com a cidade cenográfica do filme Asterix e Obelix contra César. Ela diz que assim como no filme, em que as personagens visualizam a cidade de Roma com monóculo, era como se o Morro também estivesse tão distante e eles conseguiam fazer o mesmo, que estava tendo uma experiência fantástica com tudo que estava vivendo dentro da favela. Faz um agradecimento ao final, e chega falar que sentia que era como se tivesse tirado a venda de seus olhos.
É nítido que cada vez mais as favelas estão se tornando atrativas para os turistas, principalmente os estrangeiros. Muitos deles quando vêm fazer turismo aqui no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, já estão preferindo hospedar-se próximo ou dentro de uma favela. Frequentam e participam de eventos culturais, como bailes funks e pagode. Uma verdadeira conexão, que se iniciou através do ritmo mais popular dos morros, o Samba.
O morro não tem vez
E o que ele fez já foi demais
Mas olhem bem vocês
Quando derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar
Morro pede passagem
O morro quer se mostrar
Abram alas pro morro
Tamborim vai falar
O Morro Não Tem Vez
Tom Jobim
Grupo Kalimbao Meu Brasil
Fabrice Vellot, Thierry Mulato, Leandro Vellot, Silvia, Patrícia Pourcel, Jackie, Camille, Nicolas, Daniela, Valou Maga, Vincent Calmettes, Amalia, Denise, Nathalie