Por Rubens R R Casara[1]
Ao voltar sua atenção para o holocausto, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman reconheceu que partilhava, com tantas outras pessoas que não foram diretamente atingidas por aquele mundo de horror e desumanidade, de uma imagem simplista daquele fenômeno histórico. O holocausto era encarado como um “quadro na parede”[2], bem emoldurado para fazer uma nítida separação entre os loucos assassinos e as vítimas indefesas, entre a civilização e um momento excepcional de barbárie.
Sem dificuldades, pode-se perceber que essa percepção maniqueísta que desconsidera a complexidade do fenômeno e impede a sua compreensão é hegemônica e não se limita ao holocausto, um dos projetos políticos mais terríveis do século passado. De fato, diversos acontecimentos históricos são apresentados como quadros em que o bem está em oposição ao mal durante um momento de ruptura da normalidade. Trata-se de uma estratégia de marketing político apta a construir heróis e líderes, vender produtos, assegurar contratos, justificar políticas públicas e garantir votos. Assim, por exemplo, essa visão do holocausto, como assunto que diz respeito exclusivamente aos judeus (vítimas) e a parcela dos Alemães (loucos assassinos), permite a políticos de Israel usar “a trágica memória como um certificado de sua legitimidade política, um salvo-conduto para suas decisões políticas passadas e futuras e, sobretudo, como pagamento adiantado pelas injustiças que pudesse por sua vez vir a cometer”.[3]
No Rio de Janeiro, há um desses “quadros na parece” que recebeu o nome de “Pacificação”. Nele, episódios recentes da história fluminense, como a ocupação militar do Complexo do Alemão e a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora, são retratados como ações heróicas necessárias à reconquista do território do Estado, antes dominado pelo inimigo interno, papel atribuído ao traficante de drogas ilícitas. Com razão Vera Malaguti Batista, declara que essa obra “como peça publicitária é muito bem feita”.[4]
Porém, ao lado do discurso oficial que apresenta uma nítida separação entre a guerra de ontem e a paz de hoje, as notícias que chegam, sempre que conseguem furar o bloqueio midiático que atende aos objetivos político-empresariais dos artífices da pacificação, revelam movimentos complexos (e, não raro, perversos) incapazes de serem emoldurados. As execuções e prisões ilegais, as invasões de domicílio, o aumento do número de crimes patrimoniais e violentos nas comunidades “pacificadas”, as notícias de abusos policiais contra os moradores, as vítimas de balas perdidas, as propinas pagas às autoridades (o chamado “mensalão da UPP”), as proibições de manifestações culturais e outros incidentes deixam claro que chamar a política de segurança do Estado de “Pacificação” é uma grosseira ironia ainda não percebida pela população do Rio de Janeiro.
Na melhor (e mais ácida) crítica ao projeto político que ganhou corpo (e adesão popular dentre a camada da sociedade que se acostumou e naturalizou o autoritarismo) com a invasão do Complexo do Alemão, Vera Malaguti Batista deixou consignado que esse quadro esconde “a ocupação militar e verticalizada das áreas de pobreza que se localizam em regiões estratégicas aos eventos desportivos do capitalismo vídeo-financeiro”.[5]
O quadro pintado pelo Governo do Estado, em que, como nas cantigas de ninar “o bem vence o mal”, faz com que não se preste atenção na janela que se abre sobre as comunidades “pacificadas”, de onde se pode “ter um raro vislumbre de coisas de outro modo invisíveis”.[6] Olhar pela janela é “quebrar a censura do que é oficial, ou melhor, a aparência de unanimidade que favorece os discursos oficiais em situações oficiais,[7] e não se contentar com a imagem vendida pelos governantes com objetivos político-empresariais.
Ao se olhar pela janela, para além da comodidade de quem recebe informações na poltrona de sua casa, poder-se-á entender que, para a população das comunidades pacificadas, a ilegalidade e os abusos dos Agentes Estatais não diferem de outras ilegalidades e abusos. Esse olhar é condição para se perceber que o discurso de combate às drogas ilícitas, que justificou a ocupação do Complexo do Alemão e a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora, esconde uma funcionalidade muito mais ampla: o controle (e confinamento) da população indesejada, vítimas, de quem se exige obediência, que são etiquetadas e que, não raro, são convocadas a colaborar com as políticas públicas que aprofundam as desigualdades sociais e as segregações espaciais.
Enfim, após olhar pela janela, não será surpresa se o quadro da Pacificação perder o encanto, se as cores parecerem diferentes ou, ainda, se forem percebidas semelhanças entre a obra assinada pelo Governador Sério Cabral e os quadros que retratam os guetos no qual sobreviviam as vítimas da “solução final”.
[1] Rubens R R Casara, Juiz de Direito do TJ/RJ, Doutor em Direito pela UNESA, Mestre em Ciências Penais pela UCAM/ICC, Professor de Processo Penal do IBMEC/RJ, Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia (MMFD).
[2] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 9.
[3] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 11.
[4] BATISTA, Vera Malaguti. O Alemão é muito mais complexo. Rio de Janeiro: mimeo, 2011.
[5] BATISTA, Vera Malaguti. O Alemão é muito mais complexo. Rio de Janeiro: mimeo, 2011.
[6] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 10.
[7]BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002, p. 24.