Na cidade do Rio de Janeiro encontramos, como em qualquer outra cidade do mundo, pessoas que trabalham, pessoas que estudam, pessoas que se unem, pessoas que se afastam, ou simplesmente, pessoas realizando… as suas vidas.
Nestas diversas práticas é bem possível que uns estejam dedicados a olhar a vida dos outros e procurar entender ou decifrar alguns símbolos mais marcantes destas vidas, com a perspectiva de contribuir com conceitos e receitas correcionais. Certamente que, o olhar de terceiro é fundamental para contrastar com o olhar próprio, pois a posição e o tipo de envolvimento produzem perspectivas distintas. Contudo, o terceiro busca a evidência do que está “disforme”, “irregular” ou até mesmo “errado”. Desta forma, é possível, mesmo que não objetivamente, se estabeleça padrões, onde não há erros ou diferenças, onde o “terceiro que olha e analisa” possui uma referência do “melhor”, ou do padrão. Portanto, ao fazer estas leituras técnicas, podemos afirmar que socialmente alguns comportamentos ou formas de vida precisam mudar, para que se “encaixem”, quase que numa moldagem moral ou artificial. As pessoas que estão na mira destas análises possivelmente podem se sentir “abaixo” e o que estão realizando se posicionarem “acima”, diante do discurso “corretivo”, pois o seu plano é superior. Mas, estas ocupações de espaço não se dão de forma efetiva, mas, possivelmente, no plano subjetivo. Daí que, admitir que “são superiores” é um passo impensável, pois não haverá coragem para tanto.
Assim, a sociedade está ocupada por milhões de pessoas que diariamente privatizam os seus problemas e suas angústias, e também o prazer, como forma de ser soberano de seus pensamentos, atos e formas de vida. Mas, neste cenário surgem as análises dos “profissionais” ou “cientistas” que analisam estes “dramas” e imprimem interpretações técnicas, com um terceiro isento e de “boas intenções” (mas, não podemos esquecer, que subjetivamente, podem estar se sentido em um plano superior, isento, e/ou “perfeito”). Todavia, ao que tudo indica, todos, todos sem exceção, são falíveis e responsáveis por erros e acertos. Desta forma, o ‘olhar’ de quem pretende interpretar, científica ou intelectualmente, também deve ser relativo, quase acanhado, pois somos todos seres humanos complexos, instáveis e incertos.
Portanto, sobre as ações realizadas e denominadas “pacificações” na Cidade do Rio de Janeiro, são alvos diários de inúmeras análises, pelas quais se tenta “dizer a verdade” sobre o que está ocorrendo, e qual deveria ser a melhor alternativa. Disto, resulta-se:
Perguntas simples: Como avaliar as ações realizadas pelas “forças” do poder oficial do Governo do Estado do Rio de Janeiro, nas áreas de moradia onde se concentra visíveis dramas e contradições? Quem poderá melhor diagnosticar as características dos “possíveis” problemas e propor melhores reações transformadoras? Quem de fato poderá melhor identificar o “drama” e sugerir “as portas de saída” ? Quem pode de fato dizer que viver sob o império da força se não vive no império da força? Se não aceitamos práticas violentas de policiais, nas suas ações de rotina, como admitir ações semanais à sua porta sob a justificativa de “caça aos bandidos”? Se não estamos sob “os olhares” dos jovens e adultos armados que vendem drogas, como “entender” estas relações entre eles e os moradores das favelas? Se não vivemos tudo isto, como afirmar que o Governo “erra” ao realizar operações que visem mudar o cenário?
Em quase toda a história da Cidade do Rio de Janeiro eram realizadas ações sistemáticas (diárias, semanais e mensais) visando “combater” o tráfico de drogas. Em momento anterior desta história, o “combate” era contra o escravo, o malandro, o anotador do jogo do bicho e os “pivetes” da rua (aliás, estes ainda continuam sendo alvos do controle social penal, sob bases oficiais de programas ditos de “acolhimento”).
Atualmente, por motivos oficiais (simplesmente uma eficiente política da Segurança Pública ou uma nova proposta do atual governo) ou não oficiais (jogos internacionais ou rompimentos das redes envolvidas), estão ocorrendo as ações interinstitucionais (agentes da Polícia Militar, da Polícia Civil, da Polícia Federal e até das Forças Armadas da União) em algumas favelas da cidade, a partir das quais os policiais estão permanecendo na áreas “ocupadas”, diferentemente do que ocorria em outros momentos da história. O morador então, de fato, está vendo um opressor deixar de ser opressor. Mas, também não quer um substituto. Quanto as drogas, o morador sabe que este problema não se “resolve” com força, até porque, o comprador é morador do “asfalto”, e que a nova lei não o trata como “o bandido” que lhe oprimia. Aliás, ele percebe que a sociedade não quer nem precisa discutir a “descriminalização”do uso da maconha, pois ela já circula quase que livremente nas “mãos da elite”. Portanto, para o morador, a grande questão é ter mais “liberdade” e ninguém mais do que ele (mesmo sendo cientista, intelectual ou especialista) sabe o quanto isto é difícil, há décadas, nas favelas.
Segundo o discurso divulgado pelos representantes do governo estadual, a proposta é “pacificar” e implementar a “cidadania”. Então, diante da força imposta por determinados indivíduos (traficantes) nas favelas, convencionou-se “enfrentar”, isto é, “combater” com força, por meio de operações policiais e ocupar estas “áreas”. Para a instituição Polícia Militar esta estratégia é a mais comum por ser a mais conhecida, pois fazem da mesma a sua ferramenta mais peculiar.
Inúmeras críticas decorrem deste cenário, isto é, destas áreas “ocupadas”, como por exemplo: o uso do termo pacificação; a intervenção policial permanente; o não cumprimento das promessas de políticas assistenciais aos moradores (crianças, adolescentes e idosos); limites da liberdade do morador, impostos pelos policiais; continuidade do tráfico, mesmo que não armado; envolvimento de policiais com os vendedores de drogas; indiferença governamental diante da penetração de grupos “milicianos”, entre outras críticas.
Outra crítica, que não deveria surpreender, é a “espetacularização” das ações policiais, por parte da imprensa. A mídia tem como atividade divulgar fatos ou notícias de interesse social, seja político, econômico, privado ou qualquer outro. Inicialmente devemos aceitar o fato de que todas as pessoas possuem interesses, e não será diferente para os que governam ou para os que comercializam a notícia. As concessões para exploração dos serviços de telecomunicações foram concedidas por interesse político, para que objetivos fossem cumpridos. E estes objetivos não foram construídos pelo povo, de forma democrática. Então, não há segredo nenhum sobre o “porque” os “canais” agem como agem.
Cabe, então, entender, que estas manipulações dos fatos e das notícias ocorrem, a partir da conveniência de interesses. O importante é que, o receptor da mensagem esteja apto a admitir estas possíveis manipulações e interpretar segundo seu “senso crítico”. O problema, por outro lado, está na ausência do senso crítico que se adquire, via de regra, pela educação, que certamente politiza o indivíduo, vez que lhe concede maior amplitude de análise dos fatos (problematização e dialetização dos fatos). Não havendo esta potencialização crítica o indivíduo receptor se torna vulnerável às “verdades” construídas pelas mídias.
Todavia, o que não se torna simples é a surpresa dos “técnicos”, “intelectuais”, ou “especialistas” para com esta tática da mídia. Como desprezar o jogo político e o processo histórico que envolve as redes de notícia? Com relação as ações das forças de controle social na Cidade do Rio de Janeiro, nas chamadas “pacificações”, sem dúvida alguma a imprensa falada e escrita iria explorar ao máximo, até como forma de desviar o foco dos dramas vividos pelos moradores. Mas, devemos nos ater aos “dramas” e não ao espetáculo. Desta forma, para além das imagens divulgadas, devemos atuar como parceiros dos moradores, e perceber o que está para ser denunciado por eles (opressão, miséria, ausência de direitos básicos…). Neste sentido, é preciso ouvi-los, e saber deles o que é “afastar” os homens armados, os compradores de drogas e o conflito sistemático com os policiais. Eles são os atores principais!
A crítica não deve estar pautada simplesmente pelo forma realizada, seja pelo governo ou pela imprensa, até porque quanto de nós tentamos colaborar com estes moradores? É muito provável tenhamos medo de passar próximos destes locais, quanto mais entrar e tentar alterar suas vidas. Seria simples querer entrar nas favelas (onde há indivíduos armados) e tentar ajudar, ou poderíamos ser questionados por aqueles que atuavam por meio da força?
Considerando que o meio oficial, via de regra, foi o uso da força, é preciso cobrar que esta força corresponda a uma primeira fase, e que a legítima e fundamental ação do governo ocorra por meio de práticas assistenciais, que a população, também via de regra, não realizava. Assim, seja qual for o motivo, eleitoral ou não, torna-se importante o uso estratégico destas ações, para que os moradores possam vislumbrar, de fato, um novo futuro, principalmente com apoio dos moradores do “asfalto”. Tornar a atual política uma permanente ação de transformação de vidas é dever de todos nós, que “olhamos” e “analisamos” à distância.
Não querer mortes das crianças e jovens que atuavam no tráfico é tão importante como não querer ver os moradores vivendo em condições subumanas.
Olhares de estranhos para realidades estranhas devem ser realizadas se o principal sujeito nos der esta possibilidade, na garantia de que não iremos interferir nos seus desejos mais simples, que para nós realizamos com grande facilidade e pouco valor.
Aderlan Crespo
Universidade Candido Mendes-UCAM
Organização de Direitos Humanos Projeto Legal-ODHPL/MNDHRJ