Paternidade Trans

“Crio a minha filha para que ela saiba que o pai dela é alguém que lutou para que o mundo fosse melhor, acreditando que o meu exemplo fará dela uma pessoa melhor ainda”.

foto: arquivo pessoal

No Brasil, o Dia dos Pais é comemorado no segundo domingo de agosto e, neste ano, a celebração aconteceu a exatamente um mês, no domingo (8). O tema paternidade, principalmente, nos dias atuais, transpassa o padrão social construído em épocas anteriores. Hoje, há diversas construções de famílias e há várias formas de exercer e ver o exercício de ser pai.

Com isso, o jornal A Voz da Favela foi em busca de uma história contemporânea, de um pai que foi em busca de um sonho, mesmo em um momento de sua vida em que isso não lhe parecia possível.
Nossa entrevista em homenagem a esse dia dos pais é com Glauco Vital, carioca, 50 anos, fotógrafo, homem trans e ativista LGBTQIA+, que nos contou como foi a sua jornada até a chegada de sua filha Giovanna e como essa realidade transformou o seu dia a dia.


AVF: O que é ser pai, na sua visão?

Glauco: Ser pai é entender que não se está mais sozinho no mundo. É sentir amor e uma responsabilidade tão grande por um ser que a vida nos presenteou, e ficar eternamente grato por isso. É rir e também chorar por cada vitória do filho, e estar sempre por perto quando ele precisar. É querer ser uma pessoa melhor todos os dias para se tornar o melhor exemplo para eles. Ser pai é um farol que nunca se apaga.


AVF:
“Eu sempre quis ser pai”. Como essa frase tão comum, dita por muitos pais, se expressa na sua história?

Glauco: Sou um homem trans, o que significa dizer que quando nasci fui designado com o “sexo feminino”, mas eu nunca me enxerguei pertencendo ao gênero feminino. Cresci vendo homens sendo pais e eu compartilhava desse sonho também. E nesse contexto é importante dizer que só descobri que era um homem trans, e que existiam outros homens iguais a mim, aos 45 anos. Hoje eu vejo que, por querer ser pai, e não mãe, inventava várias desculpas para não planejar filhos.


AVF:
Como a Giovanna entrou na sua vida?

Glauco: Ah… a Giovanna… Antes da Giovanna entrar na minha vida, a Marcela chegou. Conheci Marcela em um aplicativo de relacionamento, no início da minha transição, quando eu ainda estava me descobrindo homem trans. Foi amor à primeira curtida, rsrs…
E logo no início do namoro já falávamos do sonho de ter filhos. Porém, não foi rápido e nem fácil. Tivemos que esperar por três anos para realizar a sonhada inseminação, e a primeira tentativa foi uma experiência muito dolorosa, já que não conseguimos levar a gravidez adiante. Dói só de lembrar…
Mas não desistimos. Fizemos a segunda tentativa e, como resultado dela, hoje temos a nossa Giovanna, que está com um ano e oito meses, o nosso amor maior!

AVF: Depois da existência da Giovanna na sua vida e da sua esposa Marcela, como as pessoas do seu convívio encaram a sua paternidade?

Glauco: Então, eu percebo isso de três formas: a primeira é a família, e nesse caso eu fui e sou um privilegiado, já que sempre recebi apoio da minha. Das pessoas que não entendem a minha história e por isso não percebem a minha paternidade. Com essas, como sempre digo que as pessoas não nascem sabendo, eu tenho toda a paciência do mundo em explicar a minha vivência. E tem aquelas para quem acabei virando exemplo, como os homens trans que também querem realizar o sonho de serem pais, realizando a gestação de seus filhos ou não.

AVF: Como a pandemia afetou a sua rotina como pai?

Glauco: Bom, antes da pandemia, e a Giovanna nasceu uns meses antes do isolamento social, Marcela e eu já tínhamos combinado que, ao contrário das famílias tradicionais, eu ficaria em casa para cuidar da nossa filhota. Ela é enfermeira e está na linha de frente contra a Covid-19, em dois empregos. Eu sou fotógrafo e possuo horários flexíveis e mais tempo livre, o que traz uma viabilidade melhor para que eu fique em casa com a nossa bebê.


AVF:
Houve algum obstáculo para você registrar sua filha?

Glauco: Não, nenhum, na verdade. Na época eu trabalha na Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual do Rio de Janeiro (CEDS Rio), órgão responsável por fiscalizar e fazer parte da criação de políticas públicas voltadas à população LGBTQIA+ do nosso município. Bem antes da Giovanna nascer, o departamento jurídico da Ceds já havia me orientado sobre os meus direitos. E acabei por me tornar o primeiro homem trans a receber a licença paternidade dentro da prefeitura do Rio.

AVF: Como está a questão de homens trans que pretendem gerar seus filhos?

Glauco: Isso tem sido um problema sério. Nós homens trans sofremos demais com a invisibilidade na saúde. Ninguém para pra pensar como um homem trans que já tenha retificado seus documentos (feito a alteração de gênero e/ou nome), consegue ter acesso, por exemplo, às ginecologistas. O sistema eletrônico de marcação de consultas não consegue inseri-los no sistema. Imaginem o quanto esses homens que querem uma gestação, terão que enfrentar dentro do próprio sistema, que não está preparado, adequado a essa realidade. Dar direito a esses homens de serem pais também é minha luta.


AVF:
Você tem receio dos preconceitos que a Giovanna pode sofrer por ter um pai trans?

Glauco: Acho que todos nós, pais e mães, sempre teremos algum receio ao colocar um filho no mundo. E temos esse receio por diversos motivos diferentes. Antes da gestação, Marcela e eu conversávamos muito sobre isso, de como existem pessoas que excluem o outro simplesmente por ele ser ou ter uma história de vida diferente. Porém, não deixamos o medo nos paralisar e fomos em frente com o nosso sonho.
Crio a minha filha para que ela saiba que o pai dela é alguém que lutou para que o mundo fosse melhor, acreditando que o meu exemplo fará dela uma pessoa melhor ainda.


AVF:
Respeito. Como você gostaria que a Giovanna entendesse essa palavra?

Glauco: Quero que ela entenda que respeitar o outro é tratá-lo da mesma maneira como ela gostaria de ser tratada. E que ela saiba que por trás dessa palavra, existiram pessoas incríveis, que em muitos casos, inclusive, pagaram com a própria vida para que, hoje, evoluíssemos e nós tivéssemos nossos direitos respeitados.

Celebrar a importância do papel paterno na vida familiar é algo que ocorre há muitos anos, com origem no desejo de uma filha em homenagear seu pai, em 1909, em Washington nos Estados Unidos. A data passou a ser comemorada em diversos locais do mundo, mas só no Brasil acontece no segundo domingo de agosto.

A história de Glauco mostra que o desejo de ser pai é possível, mesmo enfrentando tantas dificuldades. E traz ainda o valor do amor e do respeito, essenciais para a construção e convivência de qualquer família. Feliz Dia dos Pais!

matéria publicada originalmente no Jornal A Voz da Favela edição de Agosto

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