Um ano depois de sua implantação, a Unidade de Polícia Pacificadora do Santa Marta ainda é vista com desconfiança pelos moradores da favela. A maioria não quis dar entrevista. Socióloga enxerga tentativa de controle social por parte do governo.
Por Marcelo Salles (Especial para o jornal A VOZ DA FAVELA)
Antevéspera de natal, visito o Santa Marta. Favela mais íngreme da cidade, encravada em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, é também o laboratório do governo Sérgio Cabral para diversas iniciativas: construção de muros, instalação de câmeras de vigilância e a implementação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Estas teriam o objetivo de “expulsar o tráfico, resgatar o papel do Estado e garantir segurança 24h” e já se fazem presentes em nove comunidades, quase todas na zona sul: Babilônia, Chapéu Mangueira, Ladeira dos Tabajaras, Morro dos Cabritos, Pavão-Pavãozinho, Cantagalo, Cidade de Deus e Batan, além do Santa Marta.
Da Rua da Matriz, que fica em frente ao Santa Marta, é possível ter uma visão geral da favela, que reúne cerca de dez mil moradores. Do lado direito está o trilho dos bondinhos e do lado esquerdo, o muro, a forma encontrada para restringir o espaço físico das pessoas que vivem ali. O conjunto das casas, antes integrado à mata, agora parece uma gigantesca caixa de fósforo inclinada. No pé do morro estão fincadas duas placas enormes do governo estadual anunciando investimentos em urbanização e iluminação, num total de 22 milhões de reais e 120 empregos.
Seguindo a Rua da Matriz até o final e atravessando a Rua São Clemente chego ao primeiro ponto da ocupação policial: uma blazer da Polícia Militar, em cima da calçada, marca posição na subida do morro. Continuo caminhando e observo que quase todos que vivem aqui são negros, quase negros ou nordestinos. De repente, a viatura passa a toda velocidade em direção ao interior da favela, por uma rua estreita, ligando e desligando a sirene de modo a provocar um barulho intermitente e irritante. Um homem negro, velho, de bermuda e chinelo, com a camisa pendurada no ombro, esbravejou e fez um gesto de desaprovação com o braço: “Pára de palhaçada, ô filho da puta!”. Foi o primeiro sinal de que nem todos aprovam a ocupação, como apregoam as corporações de mídia.
Além das rondas freqüentes dentro da favela e da blazer que fica no pé do morro, há três outros pontos fixos da UPP: um na Praça do Cantão, outro no pé da Escadaria e o QG, que fica no topo do morro. Este tem três andares e uns 500 m2. Fica atrás de um muro branco chapiscado e logo acima de uma pedra. Do seu lado oposto, num plano inferior, há uma quadra de futebol. Depois da quadra está a Igreja do Nazareno, circundada por um aglomerado de oito casas. Dessas, quatro são feitas de uma madeira vagabunda e telhados de um material já enferrujado – todas caindo aos pedaços. O lugar tem uma vista privilegiada. Além da visão panorâmica da favela, é possível divisar a Ponte Rio-Niterói (dá até pra ver se tem engarrafamento), o Cristo Redentor, a Lagoa Rodrigo de Freitas e as praias, ao fundo.
Permaneço no topo do morro por aproximadamente uma hora, tempo suficiente para ver jovens e adolescentes jogando bola, varais com roupas coloridas, um menino empinando uma pipa do Flamengo e algumas inscrições na pedra abaixo da Igreja: CV R9 AL (ou RL, não estou certo). Mas o mais curioso foi ver três moradores saindo da sede da UPP carregando mantimentos em sacolas amarelas, dessas de supermercado.
Desço pelos dois bondinhos que em cinco trechos ligam o topo ao pé do morro. O primeiro cobre as três primeiras estações e tem capacidade para 25 pessoas simultaneamente; o segundo complementa o trajeto e leva até 20 pessoas. Na placa diz que o itinerário completo é feito em apenas 10 minutos. Eu contei 15, fora o tempo de espera, que dependendo do horário pode chegar a uma hora. Além disso, os bondes não estão equipados com ar-condicionado, o que faz com que os passageiros suem aos píncaros, sobretudo no verão carioca com o bonde lotado. Os dois mini-ventiladores, longe de dar conta do recado, apenas são notados devido ao barulho insuportável que fazem, e duas semanas depois pude observar que um deles estava quebrado. De qualquer forma, a opção parece ser mais “agradável” que subir, a pé, e por vezes carregando crianças ou compras pesadas, os 788 degraus da favela.
Tento ouvir a opinião dos moradores sobre a presença da polícia na favela, mas, como havia sido advertido, foi difícil encontrar alguém pra falar. Nesta primeira visita não consegui ninguém, assim como na Cidade de Deus, outra comunidades ocupada por UPP. Na descida tentei puxar papo com um homem, que respondeu-me um lacônico: “Cada um tem sua opinião”. Mas e qual é a sua? “Sei lá”, disse, baixando a cabeça. Do topo ao pé do morro abordei sete pessoas. Sete baixaram a cabeça, o que me trouxe à memória a música do Chico Buarque: “Hoje você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão/A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão”. Já estava indo embora, perto da Escadaria, quando fiz uma última tentativa. O morador disse, sem se identificar e enquanto se afastava de mim: “Saiu uma merda e entrou outra”.
SEGUNDA VISITA
Dia 27 de dezembro, domingo. O coletivo Visão da Favela Brasil, organizado pelo rapper Fiell, promoveu uma atividade na Praça do Cantão. Houve apresentação dos B-Boys, cuja dança lembra muito a capoeira, talvez num ritmo um pouco mais acelerado, e repleta de posições insólitas (até deitados eles dançam!), mas com a mesma ginga. E depois que os jovens e adolescentes se apresentaram, crianças bem pequeninas, de quatro ou cinco anos, tentavam imitar os movimentos.
Por volta das 18h, céu claro ainda, comecei a notar a presença ostensiva da PM. De 10 em 10 minutos uma ronda com três policiais passava no meio da pista de dança, parando na laje de uma casa em frente ao palco ou num pequeno espaço coberto no flanco direito, por trás de todos que curtiam a música. Alguns policiais portavam até três armas, além de mochilas e coletes equipados com diversos bolsos. A cada grupo de três, um estava munido de fuzil e às vezes outro sacava a arma e mantinha o dedo no gatilho, além de uma cara de poucos amigos. Meio difícil se divertir num clima desse, em que todos são considerados potencialmente criminosos pela autoridade pública. Uma imagem muito diferente daquela veiculada pelo caderno especial do jornal O Globo de 31/12/09, que mostra dois PMs da UPP da Cidade de Deus, sorridentes, brincando alegremente com uma criança.
Uma das primeiras atitudes da polícia, ao ocupar o Santa Marta, foi restringir manifestações culturais e decretar toque de recolher. Os relatos de agressões e violações contra moradores não demoraram a aparecer. A Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa registrou ao menos três casos, que incluem revistas vexatórias, ameaça e agressão física.
Uma das vítimas, Valdeci, concordou em dar entrevista durante o evento. Foi o único. Negro, 27 anos, conta que o primeiro entrevero se deu quando policiais tentaram entrar em sua casa. “Sem mandado ou minha autorização, não entra”. “Então vou te levar para a delegacia”. “Então vamos”. Telefonou para a patroa, que não acreditou na versão dos policiais e foi até a delegacia defender o funcionário.
Da segunda vez, os policiais tentaram prender seu cachorro, um rotwailer conhecido e querido por todos na favela. Chamaram os bombeiros, mas a população desceu para impedir o seqüestro do animal. Percebendo o que estava acontecendo, um bombeiro disse a ele para tomar cuidado e não deixar o cão sair de casa sem coleira, pois PMs estariam de maldade com ele e com o cachorro. Segundo me disse, Valdeci tem sofrido seguidas ameaças, do tipo: “Não vou sossegar enquanto não te foder”. Só que Valdeci não recua, e devolve: “Se me der uma vou te desmaiar”, ou então “Sou pai de dois filhos, ralo pra caralho, tá aqui minha carteira”.
Na terceira vez, Valdeci se recusou a ir para a “dura” – revista policial em que os suspeitos são considerados potencialmente perigosos e revistados pelas costas – e foram necessários cinco policiais para conseguir algemá-lo. Depois de imobilizar Valdeci, um deles chegou por trás e o golpeou com um soco na altura do fígado. Mais uma vez ele foi levado para a delegacia e, dessa vez, instauraram inquéritos contra ele, por desacato e ameaça. Valdeci é nascido e criado no Santa Marta, seu salário como entregador de vídeo-locadora é R$ 650,00, e assim cria os filhos e ajuda a mãe.
A capitã Priscila, chefe da UPP do Santa Marta, não quis comentar o caso de Valdeci. Sobre Fiell, ela disse que houve uma quebra de acordo por parte do compositor em relação ao limite de horário, e por isso suas atividades foram suspensas durante um determinado período. Em longa entrevista, a policial de 31 anos, 12 dos quais na corporação, mostrou-se uma pessoa extremamente simpática e aberta ao diálogo. “Encaro crítica de maneira muito saudável, porque o dia em que encararmos crítica como problema não somos bons profissionais”, disse, enfatizando ainda que considera normal que os policiais façam a patrulha com armas em punho. “Isso não é proibido”, diz a capitã, que garante que a UPP tem o apoio de grande parte dos moradores.
FAVELA SOB CONTROLE
O projeto das Unidades de Polícia Pacificadora encontra resistência entre lideranças populares e pesquisadores. Deley de Acari, poeta e animador cultural, declarou no ano passado ao jornal A Nova Democracia: “Isso vai dar é em muita morte, muita chacina, muita mãe favelada chorando à beira da cova de seus filhos, e/ou muita mãe de favela com seus filhos chorando em seu colo, nos pátios das cadeias nos dias de visita”.
A socióloga Vera Malaguti, secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia, chama a atenção para o nome escolhido pelo governo Cabral: “Pacificação remete a toda uma tradição militar no Brasil. Só a repressão aos cabanos matou quase 50% da população do Grão-Pará”.
Além disso, a pesquisadora enfatiza um dado importantíssimo e raramente percebido pelos que discutem a questão: o controle social permanente dos espaços populares, onde a luta de classes encontra condições mais favoráveis para se desenvolver. “É o sonho do capitalismo. Pegar a mão-de-obra e ter o controle total. Meter a vida dela no campo de concentração. Enquanto isso, liberdade para os ricos. Esses podem andar livremente e concentrar a riqueza sem correr nenhum risco porque a conflitividade social, a luta de classes está controlada o tempo todo. O sonho é fazer isso com todas as favelas”, sintetiza Vera.