¹Artigo apresentado como trabalho final para a disciplina “A construção de biografias: narrativas, subjetividade e reputação”, ministrada por Marta Cioccari, Priscila de Oliveira Coutinho e Dominique Boxus no Museu Nacional 1º/2014.
Introdução
“Querido irmão Dennis, bom demais ter você no nosso time agora. Saiba que o melhor está por vir.” Com essa dedicatória me deparo a cada vez que abro o livro Perseguindo um sonho: a história da fundação da primeira Agência de Notícias das Favelas do mundo, uma autobiografia lançada em Março de 2014 e intrinsecamente ligada à trajetória militante de André Fernandes, autor e centro gravitacional de uma narrativa que percorre parte essencial da história do Rio de Janeiro da década de 90 aos anos 2000. Meu contato com André deu-se em Julho de 2012. Cursando Ciências Sociais na Universidade de Brasília delineava ainda meus interesses de pesquisa que pouco mais tarde, em grande medida devido às portas por ele abertas – dentre tantas outras que a esse mestre das chaves já coube abrir –, se voltariam para o funk carioca.
Já de viagem marcada para uma visita casual ao Rio, ouvi de uma colega que deveria procurar informações sobre a Agência de Notícias das Favelas, organização cujo fundador havia palestrado em Brasília meses antes. Entusiasmado ao ver a página na internet e o teor contestador das publicações, entrei em contato com André, que me orientou a procurá-lo na ocasião de minha visita à cidade. À minha ligação sucedeu-se de imediato o convite – quase uma intimação: “venha agora ao Jacarezinho”. Não pensei duas vezes e rapidamente nos encontramos ao pé do morro. Subimos sob forte chuva até uma casa pequena onde fui apresentado ao presidente da associação de moradores do Jacarezinho, além de outros amigos e colaboradores da ANF. A favela seria invadida naquela noite pela “Unidade de Polícia Pacificadora”, o que configurava um momento delicado para a população local, sempre prejudicada por investidas e arbitrariedades policiais. Esse era o tema central das conversas naquele dia. Minha timidez inicial, justificada pelo contato recente, foi tomando contornos distintos pela receptividade de André e por nossa afinidade de interesses.
Não foi preciso muito tempo para que André contasse parte – ínfima, hoje vejo – de sua trajetória como militante em favelas cariocas. Sua posição enquanto figura central no diálogo crítico entre a “favela” e o “asfalto”, bem como sua dedicação na luta por melhores condições e justiça aos moradores de favela, foram marcantes não só para mim, mas para várias pessoas dedicadas ao rompimento de clivagens materiais e simbólicas que marcam a vivência de todos aqueles que sofrem por processos de marginalização. A ANF, fruto desse esforço anti-sistêmico contínuo possui, talvez em conseqüência do próprio embate que lhe deu origem, uma postura altamente agregadora. Quase uma centena de colaboradores de favelas e periferias do Brasil, ou até mesmo aqueles que não compartilham essa vivência, mas a ela dedicam suas reflexões e lutas, podem publicar no portal do site ou no jornal impresso mensalmente que circula pelas favelas cariocas: “A Voz da Favela”. Desde o encontro aqui narrado, integro esse grupo colaborando esporadicamente com sua produção textual. Este artigo se constituirá num exercício de reflexão não sobre o, mas junto ao livro supracitado. Não por acaso a frase elencada para o início deste trabalho foi a dedicatória: ela situa não só minha relação com o autor da obra, mas também uma tentativa de revelar pela própria estrutura textual um caminhar narrativo que expressa a natureza do diálogo constante entre os autores do livro e do artigo. A disposição das seções seguirá, dessa forma, os títulos escolhidos por André como índices de suas reflexões pessoais.
Fuzileiro Naval, missionário, agente de saúde comunitário, militante e jornalista são, cronologicamente, os pertencimentos que André Fernandes elenca como constituintes do homem que viria a fundar a Agência de Notícias das Favelas. Com exceção do primeiro capítulo de seu livro, todos os outros possuem nomes de instituições que ajudou a fundar, de outras às quais dedicou o seu engajamento, ou espaços em que atuou ocupando posições variadas. Acredito que essa escolha deve-se, em sua face mais aparente, por se tratar de uma reflexão autobiográfica centrada na criação da ANF, mas por outro lado elucida uma postura mais ampla de dedicação intensa e, por que não dizer “missionária”, à transformação das desigualdades que tanto incômodo causaram a ele e, principalmente, aos próprios moradores de favelas. Feitas estas breves observações, vamos à sua história.
Um livro, dois prefácios
O livro de André conta com dois prefácios, ambos de figuras caras às memórias de sua vida e militância. O primeiro foi escrito pelo pastor Caio Fábio, missionário que atuou ativamente na fundação da ONG “Viva Rio”, além voltar seu engajamento a vários outros projetos sociais. Com ele, André participou de incursões evangelizadoras a Bangu I, atuando também na “Fábrica de Esperança” em Acari – organização cuja trajetória e especificidade será descrita ao longo da narrativa. A força da amizade estabelecida entre ambos é perceptível no prefácio do pastor:
“Amo a perseverança e o amor que o André tem por aquilo que crê de coração; amo seu chamado divino para ser e estar: um missionário encarnado e absorvido no ambiente da dor, da injustiça, dos choques extremos entre instituições corrompidas, de um lado, e a comunidade aviltada e abusada do outro; espremida tanto pela opressão da corrupção e da violência policial, como pelo próprio tráfico de drogas que domina o ambiente da favela” (Fernandes: 2014, p. 10)
O segundo prefácio foi escrito pelo jurista e criminólogo Nilo Batista, que atuou como Secretário de Justiça e Segurança do Estado do Rio de Janeiro no período de 1990 a 1994, o mesmo em que André e o pastor Caio Fábio realizavam suas incursões a Bangu I. Nilo chama atenção ao modo como as múltiplas atividades às quais se engajou André – fuzileiro, missionário, socorrista, militante e jornalista – fundem-se na constituição de “uma coerência que atravessa e harmoniza todos os destinos que trilhou” (Idem: 2014, p. 11). Suas considerações permitem alguns cruzamentos profícuos com a questão trazida por Roberto Cardoso de Oliveira e que indubitavelmente perpassa várias das reflexões que serão suscitadas por este artigo: “na multiplicidade de identidades que uma pessoa pode assumir, como essa pessoa pode manter a integridade de seu Eu? E, ainda, quais as condições de possibilidade de sua ação no mundo moral?” (Cardoso de Oliveira: 1999, pp. 12-13). Um argumento possível é pensar que o exercício autobiográfico permite a evocação desse “Eu” cuja indissolubilidade em meio a identidades múltiplas é construída narrativamente, sugerindo talvez uma solução – perpetrada pelo exercício reflexivo da “autonarração” – ao paradoxo apresentado por Cardoso de Oliveira. Esse debate – bem como alguns de seus inúmeros desdobramentos – será retomado mais à frente.
Outra dimensão também trazida à tona por Nilo Batista é a relação entre esta obra e a história das lutas que tiveram como palco o Rio de Janeiro da década de 90: “aquilo que sua autobiografia documenta indiretamente é como a criminalização da pobreza domina por completo o cotidiano da favela e dos favelados” (Fernandes: 2014, p. 11). Mais à frente, ao discorrer sobre o próprio trabalho da ANF, Nilo salienta que
“A idéia de que a favela tem o direito de narrar-se, de noticiar-se, de realizar sua própria crônica a partir de sua visão de mundo merece, nesses tempos em que a ditadura do capital comunicativo começa a ser hostilizada por mídias alternativas, ser chamada de revolucionária”(Idem: 2014, p.12)
A autobiografia de André constitui então uma narrativa sobre a luta pelo direito de narrar. Apesar de seu aparente caráter individual a memória possui, como já observado por Maurice Hallbwachs, uma face inerentemente coletiva e social:
“(…) nos souvenirs demeurent collectifs, et ils nous sont rappelés par les autres, alors même qu’il s’agit d’événements auxquels nous seuls avons été mêlés, et d’objets que nous seuls avons vus. C’est qu’en réalité nous ne sommes jamais seuls.” (Hallbwachs: 2001, p.6)
Michael Pollack propõe uma abordagem crítica em relação às considerações de Hallbwachs, tangenciando a problemática orientadora não só deste artigo, mas também das inquietações que inspiraram grande parte da atividade política de André. Mais que considerar o caráter coletivo da memória salientando e o que nela contribui para a coesão social – uma postura fortemente influenciada pelo pensamento durkheimiano – é importante matizar como sua construção é fruto de processos de dominação, imposição ou violência simbólica e, conseqüentemente, palco de uma disputa constante pelo direito à narrativa e por caminhos que permitam a fuga do silêncio (Pollack: 1989).
Embora se refira mais especificamente à clivagem “memória oficial/memória oral ou subterrânea”, as considerações de Pollack podem servir de analogia a reflexões sobre uma dimensão mais geral que poderia ser pensada na chave “narrativa hegemônica/narrativa subterrânea”. Da mesma forma que a perspectiva construtivista proposta pelo autor se volta aos relatos orais dos excluídos, marginalizados e das minorias, a criação da ANF e de outros movimentos que contaram com a participação de André é pautada pelo reconhecimento de que também o narrar, experiência eminentemente coletiva, se insere em relações de poder que, ao anularem pelo silêncio ou pelo esquecimento uma determinada identidade coletiva, anulam a própria existência destes atores no espaço social. O que o título deste artigo procura salientar é a dupla relação da autobiografia de André com essa problemática: por um lado, a ANF já encarna em si um projeto de veiculação de “narrativas subterrâneas” – para usar o termo de Pollack -, por outro, o exercício materializado pelo livro é também o de contar uma história que visa acrescentar mais um relato que problematiza a “memória coletiva” hegemônica.
O menino do passarinho
Diferente de todos os capítulos do livro, este é o único título que não se refere diretamente à atuação de André em movimentos sociais. A explicação é dada por ele mesmo: “Seria impossível contar a história da fundação da primeira agência de notícias das favelas do mundo sem falar da minha própria história” (Fernandes: 2014, p.13). Neste capítulo, revela que sua origem não está ligada a nenhuma favela carioca. Filho de pai médico e mãe formada em história e direito, André teve certos privilégios que grande parte dos moradores de favelas não tem. Tive a oportunidade de conhecer a casa em que foi criado e mora até hoje. De imediato sua localização me suscitou uma analogia: localizada em Triagem, bairro tradicional de camadas médias cariocas, mais especificamente aos pés do morro da Mangueira, sua casa representa materialmente o espaço in between à favela e ao asfalto que viria a ocupar mais tarde em sua trajetória. O título deste capítulo surge como referência a uma história que seu avô, o qual considera sua grande inspiração, lhe contava com frequência:
“Era assim: um menino ia todos os dias até uma venda perto de sua casa para comprar doces. O que mais fascinava a criança, porém, era o passarinho do dono. Toda vez que o garoto lá chegava, ficava olhando o pássaro e perguntava: „O senhor me vende esse passarinho? E, todos os dias, o senhor respondia que não estava à venda. Depois de meses ouvindo o menino pedir para comprar o passarinho, o dono da venda encheu-se e, para não ser mais importunado, concordou em vendê-lo. Pois bem, meu avô me contava essa história porque dizia que eu era como o menino do passarinho, insistente. E que não desistia quando queria uma coisa, até conseguir!” (Fernandes: 2014, p.13)
Ainda adolescente, ajudou a fundar o primeiro grêmio estudantil pós-ditadura do Colégio Pedro II, um dos mais tradicionais do Rio de Janeiro e onde se formou. Considera esse marco o início de seu engajamento. Mais tarde, ao fim da década de 80, tomou a decisão que o colocou de fato em contato com as favelas cariocas: abandonou a carreira de Fuzileiro Naval e abraçou a atividade missionária em uma das mais conhecidas missões cristãs do mundo, a “Jovens com uma Missão” (Jocum). O ingresso na missão requeria estudos teóricos e práticos. Nos estudos práticos hospedou-se em uma congregação localizada no Morro do Dendê, favela na Ilha do Governador. Ao longo dessa experiência seus planos começaram a mudar. Antes chegou a pensar em ir para África dedicar seus esforços a uma intervenção na guerra civil que assolava Ruanda em 1990, porém após conhecer a realidade de favelas como os morros do Dendê e do Borel, percebeu que a “África” poderia estar mais perto do que imaginava. Ao fim de seus estudos práticos na Jocum, foi escalado para liderar uma equipe de missionários no Santa Marta e foi a partir dos trabalhos realizados nessa favela que importantes personagens de sua história começam a entrar em cena.
É possível agora refletir com mais propriedade acerca do tratamento – sob a alcunha de “autobiografia” – dado até então ao livro de André. Esta expressão foi usada apenas no prefácio escrito por Nilo Batista e não aparece explicitada nestes termos pelo próprio autor. Acredito que seja possível dizer que no primeiro capítulo é estabelecido o que Philippe Lejeune denomina de “pacto autobiográfico”, tomado num sentido mais amplo pelas reconsiderações trazidas por esse autor a partir do momento em que deixa de pensar essa noção como um instrumento de trabalho para construir um corpus e passa tratá-la como um objeto de análise (Lejeune: 2004, p. 166). A frase elencada no início dessa seção, na qual André salienta a necessidade indispensável de contar sua própria história a fim de reconstituir a da agência cuja fundação pretende situar, pode ser usada como uma chave de estabelecimento deste pacto. Essa problemática será trabalhada com mais afinco à frente.
Santa Marta
A chegada de André ao Santa Marta deu-se em 1993. Percebendo a carência da população local por profissionais capacitados na área de saúde, se inscreveu ao mesmo tempo nos cursos de socorrista e agente de saúde comunitário na Cruz Vermelha. Rapidamente manifestou à associação de moradores seu interesse de agir com dedicação e amor em prol dos moradores, além dos planos de instalar um ambulatório que prestasse serviços gratuitos. Seu engajamento rapidamente chamou a atenção do “dono” do morro responsável pela comercialização de drogas naquele espaço, Marcinho VP, que manifestou o interesse em conhecer André. A narrativa do autor elucida com sucesso a relação de força que a figura de Marcinho impunha:
“Ao avistá-lo, sentado, cercado de seguranças, olhei nos olhos dele e ele me olhou de igual maneira. Sem desviar o olhar, caminhei em sua direção. Eu me abaixei e ele levantou-se e nosso encontro de mãos aconteceu no meio do trajeto, sem que ele conseguisse se levantar completamente para fazer o mesmo.” (Fernandes: 2014, p. 20)
Era preciso abaixar-se. Este relato é o primeiro em que se apresenta a complexidade de códigos, hierarquias e disputas de poder que permeavam o ambiente escolhido por André para o exercício de sua fé e militância. Márcio levou-o ao alto da favela, comportamento que poderia levar tanto ao fim de uma vida, quanto à solidificação do respeito. Em duas horas de conversa, o “responsável” pelo morro apresentou-o todos os seus sonhos para a favela e relatou embates com policiais que quase levaram-no à morte: foi o primeiro contato entre dois homens que iriam protagonizar muitas histórias no Santa Marta, algumas de repercussão internacional.
Com o tempo André conseguiu enfermeiras voluntárias suíças para trabalharem com ele. Angariando doações, compraram uma casa de seis cômodos na favela e realizavam o trabalho ambulatorial, ao mesmo tempo em que André promovia campanhas de evangelização e pelo desarmamento. Os diálogos com Marcinho ocorriam paralelamente. André questionava o grupo armado que ocupava a favela pelo exercício de uma atividade puramente capitalista e o informava sobre caminhos distintos seguidos por grupos armados engajados em lutas anti-sistêmicas, como o Exército Zapatista, no México. Enquanto realizava uma reforma na casa que haviam comprado para o exercício de suas atividades, percebeu a outra face da das relações de força às quais estão submetidos os moradores da favela. Buscando tijolos para a obra, foi abordado por um policial que subia o morro munido de uma metralhadora:
“Ele desconfiou de mim por causa da roupa puída pelo material de construção. Aproximou-se e perguntou se eu morava na favela. Afirmei que sim e falei: vou me identificar. Quando retirei o documento da carteira, o policial me agrediu com o cano da metralhadora. Caí e ele me chutou. Protestei: sou missionário, dirijo uma missão aqui. E ele: Crente, desse jeito? Olhei para sua tarjeta de identificação e falei que era membro da igreja de um oficial que, para minha sorte, era da mesma unidade que ele. Se não fosse isso, talvez hoje não estivesse aqui contando essas histórias.” (Fernandes: 2014, p.23)
O jogo de forças que se impunha a André, era em certo sentido semelhante ao experienciado pelos moradores da favela. De Marcinho, recebeu uma possibilidade de diálogo e apoio na busca por melhorias. Da polícia, a violência surda. É possível, em analogia com a problemática trazida por Goffman, considerar o “ser favelado” como um estigma: atributo que salta aos olhos como marcador de uma “identidade social”. Embora habitante conjuntural da favela, André tinha origens e atividades – como o fato de ser um missionário – que o marcavam enquanto ocupante de um espaço in between que o diferenciava dos outros moradores. Reconhecer o oficial membro de sua congregação é afirmar que esta identidade social atribuída a ele pelo policial tratava-se, para usar os termos de Goffman, de uma “identidade virtual” e não da “identidade real” (Goffman: 1988, p. 12) que caberia aos outros moradores da favela. Esta analogia serve para elucidar que apesar de ressaltar a singularidade da posição ocupada por André naquele contexto, esse evento permitiu-o também “sentir na pele” a força deste estigma. O trânsito potencial que possibilita o escapar do estigma, somado à proximidade simultânea aos estigmatizados o colocou numa situação tratada por Goffman como a de um “informado” cuja proximidade imposta por uma estrutura social específica constitui uma relação que leva a sociedade envolvente a considerar ambos como uma só pessoa (Idem: 1983, p.39) – atitude levada a cabo pelo policial. Tanto as reflexões de Goffman em relação ao “informado” quanto as de André apontam para o fato de que uma experiência como essa, que marca como estigmatizada uma pessoa que não necessariamente carrega essa identidade social, tende a servir como um “rito de passagem” que aproxima ou aparta de vez certos atores sociais:
“Esse fato me conferiu uma autoridade ainda maior dentro da favela, pois havia passado por uma experiência cotidiana para eles. Foi quando comecei a entender a revolta dos moradores não só com a polícia, mas também com o Estado, pois, além de não dar o que lhes era devido, como educação, saúde, saneamento básico e moradias decentes, usava a força bruta da polícia de forma indiscriminada, violando o direito mais básico daquela população, o de ter segurança.” (Fernandes: 2014, p. 23)
Visão Nacional de Evangelização
A participação do Congresso da Visão Nacional de Evangelização serve como índice de um capítulo por ter sido o cenário no qual conheceu o pastor Caio Fábio, futuro responsável por escrever o prefácio de seu livro. Apesar desse primeiro contato não ter estabelecido entre os dois uma relação mais estreita, dias depois seus caminhos se cruzariam. A pedido do jornalista Marcos Uchoa – hoje locado na Rede Globo, mas repórter do Estadão à época -, André entrou em contato com “traficantes” que estariam dispostos a dar entrevistas. A matéria publicada falava não só dos responsáveis pelo varejo de droga no Rio de Janeiro, mas também da força de evangélicos como André no exercício de um diálogo profícuo e harmônico com estes atores. Na mesma página, havia sido publicada uma matéria sobre a “Fábrica de Esperança”, projeto social que Caio Fábio dirigia.
À proximidade de uma página no jornal seguiu-se uma grande amizade a partir do momento em que o pastor, tomando conhecimento das atividades de seu colega, convidou-o a atuar junto à sua organização, a “Visão Nacional de Evangelização”. Juntos, criaram uma rede de colaboração que conectava em torno de cinqüenta favelas cariocas. Além disso, André passou a ser ainda mais procurado por aqueles interessados na produção de “atividades intelectuais” sobre as favelas:
“(…) eu me encontrava numa posição estratégica no diálogo cidade-morro-favela. O fato de morar dentro das favelas e desenvolver uma missão de tamanha envergadura me tornou
referência. Aos poucos virei uma pessoa pública. Era citado como “aquele que conhece a realidade das favelas do Rio” (Fernandes: 2014, p.27)
Foi também a convite de Caio Fábio que André tornou-se um dos principais coordenadores da campanha do Rio Desarme-se, em 1995, que tinha entre suas atividades algumas visitas de militantes às favelas, os quais trocavam armas de brinquedo por outros brinquedos não associados a símbolos de violência.
Fábrica de Esperança
A Fábrica de Esperança foi fundada pelo pastor Caio Fábio, que convidou André para auxiliá-lo em seu trabalho. A organização desenvolvia dezenas de projetos sociais em Acari utilizando-se do espaço concedido pelos donos da antiga fábrica Formiplac e beneficiava em torno de doze mil pessoas. André atuava como assessor de assuntos comunitários e chegou a morar em Acari a fim de conhecer melhor a realidade dos moradores. Foi neste período que o projeto passou por um de seus momentos mais difíceis: em uma batida policial, encontraram drogas na sede da Fábrica, gerando um intenso questionamento quanto às atividades exercidas pela instituição. De acordo com André, durante uma batida policial, “traficantes” em fuga usaram o terreno para esconder drogas. A dificuldade de diálogo era grande:
“Para quem mora no asfalto e para a imprensa isso era um fato inconcebível, um escândalo. Era preciso morar na favela para entender que, quando um traficante está em fuga, ou melhor, quando um bandido está em fuga, não pensa no caminho correto, e sim no mais fácil” (Fernandes: 2014, p. 31).
Também em 1995, André e Caio participaram ativamente em campanhas que pediam justiça ao horror da chacina ocorrida em Vigário Geral, tornando-se referências por organizarem encontros entre entidades de direitos humanos, lideranças comunitárias e moradores. Justamente nesse ano, surgiu o que André considera o embrião da Agência de Notícias das Favelas. Durante seu trabalho na assessoria da Fábrica de Esperança, criou um projeto que reunia dados estatísticos e parte da história das cinqüenta maiores favelas do Rio, numa “radiografia” com informações sobre população, habitação e infra-estrutura, entre outras: “O plano era ajudar as pessoas a terem acesso mais fácil às favelas, destruindo a idéia de territórios impenetráveis. Era a semente (que estava sendo germinada) da ANF” (Idem: 2014, p.32).
Casa da Cidadania
Após anos dedicando-se ao trabalho em favelas, André decidiu reencontrar voluntários que o ajudaram ao longo de seu trabalho no Santa Marta e visitou por um mês alguns países da Europa. Foi neste período que resolveu unir todos os conhecimentos agregados em seus anos de militância em uma só experiência, a “Casa da Cidadania”. Também nesta pausa para reflexão e amadurecimento decidiu uma característica marcante de seu novo projeto: não haveria uma vinculação religiosa. A Casa seria um local que funcionaria dentro de cada favela oferecendo cursos aos moradores a fim de muni-los com o aparato necessário para reivindicar seus direitos, podendo assim buscar de fato sua inclusão enquanto cidadãos. Em 1998, o projeto fechou um convênio com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro para o “1º Curso de Formação de Lideranças para as Favelas”, no qual palestraram a antropóloga Alba Zaluar, o jornalista Caco Barcellos, o cineasta João Moreira Salles, entre outros. Foi em companhia deste último que, no mesmo período, André atuou na produção do filme Notícias de uma Guerra Particular, documentário dirigido por Moreira Salles que abordava de forma contundente os meandros da violência urbana no Rio de Janeiro.
André acumulava tarefas e em sua rotina estava cada vez mais absorto no trabalho. A Casa da Cidadania foi fundada enquanto ainda atuava na Fábrica de Esperança, atividade que não abandonou. Ao mesmo tempo, recebeu um convite do sociólogo Caio Ferraz para assumir a Secretaria Executiva de outro projeto encabeçado por ele, a “Casa da Paz”. Caio Ferraz, grande amigo de André, recebeu asilo do Governo dos Estados Unidos em função das recorrentes ameaças de morte que sofria por sua insistência em cobrar justiça pela chacina de Vigário Geral e precisava de um responsável de confiança para atuar de perto na gestão da “Casa da Paz”. Este período de atividade intensa termina em 2002: nascia a terceira filha de André. Os outros dois, de mães diferentes, amargaram ao longo dos anos de militância a ausência do pai, que resolveu então diminuir o ritmo e se fazer mais presente na vida daqueles que amava. Além dos frutos incontestáveis de seu trabalho, a “Casa da Cidadania” deixou um legado importantíssimo. Um projeto surgido apenas como parte desta instituição, mas tão caro a André que ficava exclusivamente sob sua responsabilidade: a Agência de Notícias das Favelas, idealizada em 1997, mas que teve seu primeiro site lançado em 2001.
Movimento Favelania
Um grande projeto social nascido na Casa da Paz que nunca havia sido colocado em prática chamou a atenção de André pela proficuidade da temática e do nome: Favelania. André pediu que Caio Ferraz o autorizasse a utilizar o nome em outro movimento que, em 1998, resultou num manifesto. A mensagem veiculada pelo Movimento Favelania era sucinta e direta: procurava dar voz à favela, difundindo aos moradores destes espaços a conscientização quanto aos seus direitos básicos e questionando um aparelho estatal que sempre agiu em favor da elite dominante. Favelania era – diferente do termo “cidadania”, ao qual a práxis do Estado reservou o acesso apenas aos mais favorecidos – um direito surgido da e para a favela.
Na busca por encontrar aliados que expandissem o raio de ação de suas idéias, o Movimento Favelania uniu-se ao MST e ao Movimento dos Sem Teto na criação da Frente de Luta Popular. Juntos, realizaram um ato que levou moradores de favelas, militantes na luta pela reforma agrária e pessoas em situação de rua para uma visita ao shopping Rio Sul em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. Como parte do ato, os manifestantes simplesmente agiriam como os freqüentadores cotidianos de um shopping, entrando em lojas, experimentando roupas e realizando uma refeição na praça de alimentação. A imprensa havia sido convocada de antemão, o que possibilitou o registro das reações – intensamente hostis – de freqüentadores, donos, gerentes e funcionários de lojas. O ato realizado pela Frente de Luta Popular escancarou as clivagens que marcam a sociedade brasileira e o paradoxo candente marcado pela expansão de um consumo que se intensificava na mesma velocidade que as desigualdades. Em relação ao episódio, André já demonstra a preocupação que mais tarde seria a característica da ANF:
“Toda a imprensa nacional e até estrangeira estava lá, o que nos garantiu a realização do ato, a contragosto da direção do shopping e da própria polícia. Fomos notícia em todos os veículos da grande mídia, porém algumas pessoas na época me criticaram por ter feito uma parceria com a imprensa. Anos mais tarde, o documentário Hiato, de Vladimir Seixas, mostrou que o ato só obteve repercussão nacional devido à presença dos jornalistas” (Fernandes: 2014, p. 54)
Suas propostas já apontavam desde então a sensibilidade tão cara ao seu trabalho. Parte indissociável da luta por direitos dos moradores de favelas é a possibilidade – e por que não dizer, o poder – de narrar-se e, pelo acesso às instâncias de representação coletiva, fazer-se presente nos espaços de disputa política.
Associação de Moradores
Em 2001, ano em que montou o site da ANF – ainda vinculada à Casa da Paz – André concorreu também à presidência da Associação de Moradores do Morro Santa Marta, onde iniciou seus trabalhos como missionário da Jocum. Apesar da acirrada disputa eleitoral – em sua última candidatura havia perdido para o pastor que novamente seria seu concorrente – angariou o maior número de votos e tornou-se presidente. André conseguiu certo apoio da prefeitura do Rio de Janeiro, o que possibilitou a realização de melhorias como a instalação de um bicicletário, melhorias na iluminação pública, entre outras atividades de otimização da infraestrutura. Apesar de sua amizade com Márcio, reitera não ter permitido que a influência dele interviesse na campanha, nem no seu trabalho enquanto presidente da associação. Apesar disso, o tradicional “dono” do morro parecia começar a perder o controle: traficantes mais jovens vinham desrespeitando moradores, numa postura clara de afronta ao comportamento típico de convivência pregado por Marcinho VP.
O abandono do cargo deu-se apenas um ano depois de sua posse, num episódio que marcou profundamente André. No meio da festa de uma escola de samba, saiu para usar o banheiro e foi abordado por dois rapazes. Um deles segurava um grande pedaço de madeira nas mãos e o olhava fixamente, repetindo que não gostava dele. Sem acreditar que o rapaz faria aquilo, André colocou as mãos para trás, também olhando no fundo de seus olhos:
“Devia ter acreditado, pois ele desferiu um golpe na direção da minha cabeça. Fui salvo pelos anos de artes marciais que havia praticado, pois consegui me defender com meu braço esquerdo. Imediatamente um filme passou pela minha cabeça e entendi que poderia ser uma armação para dar fim à minha vida. Não relutei, virei-me de costas e caminhei em direção ao asfalto. Fui direto para o hospital Miguel Couto, onde fiquei internado” (Fernandes: 2014, p.61)
Rapidamente, Márcio informou-se sobre o acontecido e pediu a André que subisse o morro para que o responsável fosse “julgado” na sua frente. Ali deu-se o fim não só de seu mandato enquanto presidente da associação, mas também da amizade entre os dois: “Respondi-lhe que não queria sangue em minhas mãos e que parava por ali minha amizade com ele, pois quase havia perdido a minha vida” (Idem: 2014, p.61). Justamente nesse período, vinha sendo escrito o livro Abusado, escrito pelo jornalista Caco Barcellos sobre a história de Marcinho VP e que mais tarde viria a se tornar um best-seller.
Abusado
A personalidade de Márcio chamava a atenção de todos com quem ele estabelecia contato. André também não passou incólume a essa experiência: “Márcio era inteligente, gostava de ler e era diferente, pois pensava e demonstrava interesse pelos problemas sociais daquela população” (Fernandes: 2014, p.63). Pela singularidade desta pessoa cativante, muitos que a ele eram próximos o incentivavam a escrever um livro: sua história e o desejo de mudar sua realidade podiam servir de inspiração ou mote para reflexão a todos aqueles que pensavam em começar ou abandonar uma carreira no tráfico. A ideia de Caco Barcellos como um nome possível para narrar sua vida agradou Márcio, o qual pediu a André que entrasse em contato com o jornalista. Caco alertou Márcio quanto aos riscos que ele correria ao ter sua história contada, mesmo sob um pseudônimo, e afirmou que não se interessava por nada que ele ia fazer, apenas pelo que já tinha vivido. Márcio concordou e ambos deram início a uma série de encontros nos quais o jornalista tomava seus depoimentos, quase sempre acompanhados por André.
No período em que foi lançada a obra, no ano de 2003, André já não morava no Santa Marta – após o incidente narrado na seção anterior – e cuidava de sua filha recém-nascida. A repercussão do livro foi enorme. Nele, Márcio era tratado sob a alcunha de “Juliano” e André aparecia reiteradas vezes como “Kevin Vargas”. Os pseudônimos não foram suficientes para evitar a exposição de alguns personagens do livro, especialmente o protagonista. Em meados do mesmo ano, a notícia veio de forma avassaladora:
“Em julho de 2003 recebi um telefonema. Ao desligar, Roseli, minha esposa, perguntou: o que houve? O que aconteceu? E ficou me olhando sem entender. Eu, com o celular ainda no ouvido e pálido comecei a repetir: O Márcio morreu! O Márcio morreu! Não parava de repetir em voz baixa, sem saber o que pensar ou falar” (Fernandes: 2014, p.64)
Este evento agiu como catalisador de grandes mudanças que ocorreriam na vida de André. Novamente em contato com membros da Jocum, resolveu mudar-se para Maringá, no estado do Paraná, dedicar-se à família e iniciar um curso de Jornalismo.
O Jornalismo
As condições para a continuação de seus estudos no Centro de Estudos Universitários de Maringá – Cesumar – não eram nada favoráveis. Apesar de ter ganhado uma bolsa que lhe possibilitava a isenção no pagamento do curso superior, pesavam as dificuldades financeiras para sustentar sua família, além da saudade dos amigos e do Rio de Janeiro. O impulso para o abandono do curso antes da diplomação foi dado por um professor que, ao lhe conferir uma nota baixa apesar do conhecimento e mérito demonstrados por André numa dada questão, disse-lhe: “Sua nota baixa é porque eu esperava muito mais de você, André, porque eu o considero um jornalista pronto” (Fernandes: 2014, p. 78). A dissidência entre aluno e mestre teria ocorrido em conseqüência dos seus anos de contato intenso com jornalistas. Deveria apresentar um trabalho sobre a “teoria do espelho”, “uma das primeiras teorias de base do jornalismo, segundo a qual as notícias são como são porque a realidade assim as determina” (Idem: 2014, p.78). André ressalta sua dificuldade em aceitar tal base de reflexão: “Eu sabia que, muitas vezes, quem determina as notícias é o editor e, várias vezes, até os patrocinadores, e que existem muitos interesses por trás do que é noticiado” (Ibidem: 2014, p.78). De qualquer forma, a frase do professor o ajudou a decidir que retornaria à sua cidade natal e tocaria enfim o projeto da Agência de Notícias das Favelas. O exercício prático em seu contato com jornalistas e de publicação em mídias alternativas possibilitou o reconhecimento de seu trabalho, sendo atendido prontamente pelo Ministério do Trabalho ao requerer seu registro como profissional da área.
De volta à minha cidade
Antes de pisar novamente em terras cariocas, André dirigiu-se a Brasília com a intenção de encontrar sua filha mais velha. Ainda na capital, ao ler o jornal “O Globo” viu anunciada a morte, no presídio de Bangu III, dos dois rapazes que atentaram contra sua vida no Santa Marta. Era, definitivamente, a hora de voltar. Dessa forma, em 2006, o Diretório Central de Estudantes e o Centro Acadêmico de Filosofia da Uerj formaram as bases iniciais de apoio para a consolidação do sonho que há anos o acompanhava. Em seu contato com a Universidade conheceu pessoas que se dispuseram a participar da formação inicial da organização: a ANF estava, enfim, fundada e agora tinha à frente um jornalista que podia dedicar-se em tempo integral ao sucesso deste projeto. Reconhecida pela Reuters como a primeira agência de notícias das favelas do mundo, a ANF conta hoje com cem colaboradores que atualizam diariamente o site com notícias sobre mais de cinqüenta favelas cariocas, além de escreverem para o jornal impresso “A Voz da Favela”.
O “Eu” que sonha e narra
De volta a uma questão suscitada no início deste artigo, é possível elencar algumas características do livro de André que permitem tratá-lo sob a alcunha de “autobiográfico”. A fusão de identidades entre narrador, protagonista e autor real é uma delas, somada ao que Philippe Lejeune denomina “pacto de veracidade” (Lejeune: 2004, p. 169): o autor/protagonista/narrador descola realidade e ficção enquadrando seu relato no primeiro destes dois planos. Também o uso de pronomes em primeira pessoa – que marcam toda a obra aqui abordada – e o mesmo nome próprio que denomina o autor e o personagem principal são índices relevantes – como ressalta Émile Benveniste (Zapareto: 2010) – na demarcação desse “Eu” narrativo que se pretende uno, mas simultaneamente tridimensional.
O clássico artigo de Pierre Bourdieu, “A Ilusão Biográfica” assume uma postura contestadora em relação à apropriação das “histórias de vida” pelas ciências sociais. Suas críticas se direcionam principalmente à noção sartreana de “projeto”, que aparentemente sugere a “vida” como um todo coerente e unidirecional dotado de um sentido pré-estabelecido. O exercício biográfico – mesmo o autobiográfico – pressuporia para Bourdieu um recorte arbitrário que silencia determinados aspectos do passado para a construção deste todo coerente, ou seja, uma construção, feita no presente, de um passado capaz de lhe atribuir sentido (Bourdieu: 2006). Philippe Lejeune também reconhece o caráter arbitrário que paira sobre o exercício autobiográfico e elenca os próprios escritos de Sartre como exemplo. Sua infância não era a mesma aos 35 e aos 50 anos: havia mudado tanto suas experiências e convicções ideológicas neste período que não precisava mais da mesma criança para continuar avançando (Lejeune: 2005).
O reconhecimento de tais arbitrariedades é uma questão de fato essencial na análise biográfica, mas não constitui o escopo deste trabalho reiterá-lo numa argumentação cíclica que tende a tornar-se contraproducente. A autobiografia de André Fernandes parte de uma perspectiva claramente seletiva no que tange aos eventos que elenca de seu passado e busca construir narrativamente a “essência”, imanente ao próprio autor, que o levou à fundação da Agência de Notícias das Favelas. Essa arbitrariedade pode ser pensada, por outro lado, como um exercício poético capaz de superar o caos da experiência sensível permitindo ao autor munir-se de ferramentas para intervir politicamente na existência social: já que coletiva (Hallbwachs: 2001) e palco de uma constante disputa por poder (Pollack: 1989), a materialização da memória em narrativa engendra uma rota de fuga frente ao “não ser”, dimensão à qual o silêncio e o esquecimento relegam todas as memórias subterrâneas. Ao narrar sua história, André “luta poeticamente” para marcar seu existir social da mesma forma que a ANF, instituição que fundou, preocupa-se em garantir à favela o direito de narrar-se, noticiar-se, e realizar sua própria crônica a partir de sua visão de mundo, como ressalta Nilo Batista no prefácio dedicado ao livro (Fernandes: 2014, p.12).
Jean-Claude Passeron elucida de forma sensível algumas diferenças teóricas quanto à abordagem dos materiais biográficos que perpassam a problemática apresentada: a primeira, que o autor denomina durkheimiana tem como fundamento uma institucionalização do tempo e se utiliza dos caminhos percorridos pelos indivíduos para refletir sobre determinações culturais ou históricas; a segunda, matizada pelo pensamento de Sartre, pensa o devir biográfico como fruto de um duplo movimento entre a ação social dos indivíduos e o determinismo social das estruturas (Passeron: 1990, p. 17). Sem ater-se a rigidez de diferentes perspectivas teórico-metodológicas, talvez seja possível traçar breves reflexões – como proposto no início deste artigo, junto às próprias experiências de André.
O encontro com a vida missionária significou um ponto de inflexão importante no caminho escolhido por André. O desprendimento cristão ao qual se entregou com afinco lhe possibilitou uma vivência que dificilmente estaria disponível a um jovem cuja família tivesse uma situação financeira como a dele. Ao longo de seu exercício missionário, André não apenas “trabalhou” com moradores de favelas, mas tornou-se um. A agressão policial gratuita, o convívio num equilíbrio instável com forças conflitantes da favela passou a fazer parte de sua própria experiência até ser reconhecido como “igual”, aceitação coroada por sua eleição para presidente da Associação de Moradores. Como diria Gilberto Velho: “uma questão interessante em antropologia é, justamente, a procura de localizar experiências suficientemente significativas para criar fronteiras simbólicas” (Velho: 1987, p. 15). É justamente em reconhecimento à solidez de tais fronteiras simbólicas que André reitera a todo o momento os muros que separavam “favela e asfalto”, muro que sempre procurou escavar, abrir brechas, procurar caminhos que permitissem a ambos os lados alguma possibilidade de trânsito.
A cidade, congregadora de espaços plurais em códigos e significações possibilita também determinados fluxos – engendra um “potencial de metamorfose”, para usar a profícua noção também sugerida por Gilberto Velho (Idem: 2003, p. 29). É impossível passar incólume à transposição de determinadas fronteiras. Em sua chegada ao Santa Marta, André era um missionário e queria, movido pelo chamado divino à caridade cristã, ajudar aqueles que ao mundo coube uma parte talvez mais penosa da existência. Sonhava em diminuir a dor. Com o tempo de vivência em diversas favelas queria mais: somente um movimento anti-sistêmico, que alterasse mais profundamente as estruturas de uma sociedade fortemente clivada por desigualdades materiais e simbólicas poderia de fato apresentar alguma solução. O Movimento Favelania e a Frente de Luta Popular elucidam de certa forma esse sonho parcialmente distinto. Por fim, percebeu que a favela também tinha muito o quê falar – afinal, Marcinho VP provara isso – e que talvez sua maior arma fosse um instrumento para tecer e divulgar suas próprias narrativas. A ANF surge, por fim, como fruto de um André um pouco distinto do missionário que chegou ao Santa Marta no início da década de 90. Este artigo pretende sugerir uma reflexão talvez inusitada em relação à obra de André e o artigo de Roberto Cardoso de Oliveira elencado na segunda seção. Retornando à pergunta suscitada por este último: “na multiplicidade de identidades que uma pessoa pode assumir, como essa pessoa pode manter a integridade de seu Eu? (Cardoso de Oliveira: 1999, pp. 12-13). Em meio ao menino do passarinho, o missionário, o ativista e o jornalista parece haver um único André: o que sonha.
Bibliografia
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CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “O eu, suas identidades e o mundo moral”. In: Anuário Antropológico. Brasília: 1999.
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