Pique-esconde, bicho-papão e a violência doméstica

Imagem: Reprodução internet.

Uma menina aos seis anos vê seus pais correndo pela rua. Sua mãe salta a janela, o pai atrás a persegue pela rua até ambos retornarem para dentro de casa. Ao presenciar a cena junto com os olhares curiosos dos vizinhos, a menina vira-se para a irmã e diz: “olha, eles estão brincando de pique-esconde”.

Sandra Regina não percebeu no auge de sua inocência que estava presenciando a primeira, entre muitas, agressões de seu pai contra sua mãe. A filha morou durante 17 anos em uma casa onde presenciou diariamente a violência. A história de Sandra é a de muitas no Brasil.

De acordo com o Instituto de Segurança Pública, por dia, quatro mulheres são vítimas de lesão corporal dolosa no Estado do Rio de Janeiro. Além disso, ocorreram 71 casos de feminicídios no estado entre as 288 tentativas no ano de 2018, e 62% dos feminicídios ocorreram dentro da residência da vítima.

Hoje com 50 anos, Sandra Regina conta que na infância via o pai como um carrasco e pedia sua morte, mas hoje entende que ele era um doente. “Quando você é criança, que sabe que um bicho-papão vai chegar, o que você quer? Que o bicho-papão não chegue, né? E era assim. Quando ele saía pra trabalhar, eu queria que ele não voltasse pra casa. Todo dia eu pedia nas minhas orações a Deus para ele não voltar.”

Geralmente a violência doméstica ocorre em um ciclo que se caracteriza pelo aumento da tensão, o ato de violência e a lua-de-mel onde o agressor tenta a reconciliação. A tendência é que o intervalo de duração do ciclo diminua e vá se agravando. O final do ciclo de violência para a mãe de Sandra só se deu definitivamente depois da morte de Antônio, seu pai, mas em muitos casos o ciclo acaba com morte da vítima.

Em 2018, 1.206 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, e em 88,8% dos casos o autor foi o companheiro ou o ex-companheiro. Hoje, Sandra se sente aliviada por sua mãe não ter se tornado uma estatística de feminicídio e de enfim poder aproveitar sua liberdade em um lar sem a violência que se perpetuou durante 40 anos.

* Matéria publicada no jornal A Voz da Favela, Rio de Janeiro, novembro 2019.